Coquette - de origem francesa "coquette" significa sedutora, na gíria portuguesa pode significar vaidosa ou graciosa. Intelectual - que pertence ao intelecto ou à inteligência, espiritual.

01
Set 11

 

 

«Carta Branca» e «Os Laços Que Nos Unem» são os teus dois livros até ao momento. Ambos têm muito de ti?

Sim, ambos contam quem eu sou, o que penso e aquilo em que acredito. Sou um homem de pessoas, palavras e afectos... escrevo para que as pessoas se relacionem melhor.

Escrever significa o quê, é uma libertação?

Escrever faz parte daquilo em que acredito ser a minha missão. Reconheço que tenho o dom da palavra e escrever é uma extensão disso, é uma comunicação superior, é beber de uma fonte a que poucos têm acesso.

Tens mais algum livro na gaveta? O que podes dizer sobre ele?

Sim. Tudo o que posso adiantar é que será publicado ainda este ano pela Oficina do Livro e que aborda a importância de viver «Agora».*

Reparámos que terminas todas as tuas mensagens com a palavra «Paz». Porquê?

A Paz, tal como a Felicidade, é um estado desejado por todos, e como acredito piamente no poder das palavras, uso esse termo para me identificar cada vez mais com ele. É como se fosse a minha rubrica.

(...)

Quais os principios que regem a tua vida, o teu bem-estar, a tua conduta?

Sou um homem de valores. A minha felicidade depende apenas de mim. O Amor é a entrega e a entrega não pressupõem bloqueios do passado, preconceitos no presente, nem medo do futuro. O perdão é a exeriência mais libertadora que podemos ter. Quem sonha, age; quem pensa, fica quieto. Aceitar o inaceitável é curvarmo-nos perante a pessoa e ascender ao céu.

(...)

A tua máxima de vida é a frase de António Gedeão «o sonho comanda a vida». Porquê esta escolha?

Porque um sonho alcançado é fruto de acção, e eu sou um homem que sabe o que anda aqui a fazer, como tal, ajo e ajo e ajo. Até hoje, tudo o que sonhei, acabei por concretizar; por vezes muitos anos depois, mas essa é a diferença entre os persistentes e os desistentes.

Qual o teu próximo sonho a realizar?

Ao contrário das outras perguntas fiquei algum tempo a pensar nesta resposta... Os sonhos são metas pessoais, e como tal só faz sentido existirem se o que almejamos depender apenas de nós. Segue um exemplo: não posso sonhar em fazer parte do elenco fixo da próxima novela, seja ela qual for, porque simplesmente não sou eu que me escolho, são outras pessoas. Portanto, olha... sonho em ser melhor homem, filho, namorado e amigo, em ter uma maior capacidade de aceitação, em perdoar mais facilmente, amar em todas frentes e ser feliz como o sou hoje, neste preciso momento!

 

Texto

Fátima Rodrigues Pereira

 

* «A Dança Da Vida» é a terceira obra de Gustavo Santos.

 

Boa Estrela, N.º 197, Setembro 2010

 

publicado por coquetteintelectual às 18:25

29
Ago 11

 

 

De certo modo, parecia-me reconhecer o quarto. Enquanto pairava, com o espírito meio dentro e meio fora do meu corpo como o génio da garrafa, pareceu-me ver com os olhos da memória a cama pequena com a colcha de patchwork, a mesa, a banqueta, os quadros na parede. Mose, Henry, a estranha demência que se apossara de mim no cemitério tinham sido relegados ao registo dos sonhos e eu própria era o produto de um sonho nas trevas flutuantes. Lembrava-me vagamente de ter chegado à casa de Crook Street, de ter sido conduzida ao cimo das escadas... umas mãos simpáticas nas minhas, rostos, nomes.

(...)

Lembrava-me dos nomes delas, das vozes, da suave mistura de odores nas peles empoadas enquanto me despiam e me lavavam o rosto com água quente e perfumada... depois havia um vazio total, e agora sentia-me limpa e confortável na cama estreita e branca, vestida com uma camisa de noite de linho com folhos, o cabelo escovado e entraçado para dormir.

(...)

 

Joanne Harris

Valete De Copas E Dama De Espadas, Edições ASA, 2005

 

publicado por coquetteintelectual às 22:00

28
Ago 11

 

 

Eu não estou a sonhar, estou acordada, apesar de as enfermeiras pensarem que estou a dormir. Tal como os famosos cientistas não reparavam numa empregada de limpezas inclinada para varrer a poeira que faziam, estas jovens enfermeiras não se lembram de que uma mulher, apesar de idosa, apesar de estar a morrer, pode ter um ouvido apurado. Por vezes, juntam-se aos pés da minha cama, falando sobre os namorados, os seus casos, as roupas novas que mandarão fazer, com os cortes de seda e de renda que têm estado a acumular. Não vêem que, em tempos, fui como elas, com um cabelo louro que me chegava à cintura, que lavava uma vez por semana e que secava à luz suave e doce do Sol. Por vezes, apetece-me erguer-me desta cama e contar-lhes tudo, os caminhos de bicicleta ladeados de flores e os jovens com os seus olhares, e tudo isso a dar origem aos anos de trabalho árduo, aos meus filhos, a duas guerras temíveis que iam acabar com todas as guerras, e, por fim, a esta cama, onde ouço os seus risos abafados. O mundo gira e volta a girar, e é sempre o mesmo.

(...)

 

Kim Edwards

Um Brilho No Escuro, Civilização Editora, 2008

 

publicado por coquetteintelectual às 22:43

27
Ago 11

 

 

Mesmo depois de o novo membro da família Button ter recebido um corte de cabelo, e de lho terem tingido de negro ralo e artificial, e depois de o terem barbeado até as suas feições brilharem, e de o terem vestido com roupa de rapazito feita à medida por um alfaiate estupefacto, era impossível que o senhor Button se esquecesse que o seu filho era uma triste desculpa de primogénito. Apesar de curvado pela idade, Benjamin Button - pois foi este o nome que lhe puseram, em vez do mais apropriado, mas injusto, Matusalém - media um metro e setenta e cinco centrímetros. A sua roupa era incapaz de dissimular este facto, da mesma forma que nem a depilação nem as sobrancelhas pintadas ocultavam o facto que os olhos que havia debaixo estavam apagados, aquosos e cansados. De facto, assim que a ama que os Button tinham contratado viu o recém-nascido, abandonou a casa num estado de considerável indignação.

Mas o senhor Button persistiu no propósito inamovível. Benjamin era um bebé, e devia ser tratado como um bebé.

(...)

 

F.S. Fitzgerald

O Estranho Caso De Benjamin Button, Impresa Publishing, 2010 

publicado por coquetteintelectual às 15:36

25
Ago 11

 

Não sei o que se passa com as mulheres; querem sempre uma relação diferente da que têm. Quando conhecem alguém não dizem: Que bom gosto, como gosto da maneira que ele tem de andar, a parcimónia com que actua, como pensa ou faz os ovos mexidos, mas sim como desejaria que ele pintasse quadros abstractos, que gostasse mais da farra, ou que não tivesse tantos medos infantis, os desejos incumpridos de subir na carreira. (...) O que se passa com as mulheres de hoje em dia? Apaixonam-se perdidamente por alguém que não aceitam tal como é. Pedem sempre ao outro algo mais ou diferente, algo que não está dentro das possibilidades dele. Algo que não so liga um ao outro, que não tem que ver com o seu temperamento ou os seus gostos. Porque é que as mulheres querem mudar os homens? Porque é que não se apaixonam pelo que eles são, e não pelo ideal do que poderiam vir a ser? Tudo em que se empenham é mudá-los, fazê-los à imagem e semelhança do que elas querem que sejam ou acreditam que eram. Podem passar a vida a tentar transformar o homem com quem estão para que se pareça com esse outro ideal que foi sendo forjado na mente à conta de imaginá-lo.

(...)

 

Paula Izquierdo

A Falta, Ambar, 2006 

publicado por coquetteintelectual às 18:01

24
Ago 11

 

 

Lembro-me agora que tenho de marcar um
encontro contigo, num sítio em que ambos
nos possamos falar, de facto, sem que nenhuma
das ocorrências da vida venha
interferir no que temos para nos dizer. Muitas
vezes me lembrei de que esse sítio podia
ser, até, um lugar sem nada de especial,
como um canto de café, em frente de um espelho
que poderia servir de pretexto
para reflectir a alma, a impressão da tarde,
o último estertor do dia antes de nos despedirmos,
quando é preciso encontrar uma fórmula que
disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer. É
que o amor nem sempre é uma palavra de uso,
aquela que permite a passagem à comunicação ;
mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale,
de súbito, o sentido da despedida, e que cada um de nós
leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio
ser, como se uma troca de almas fosse possível
neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e
me peças: «Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas
vezes pensei em fazer isso mesmo, mas era tarde,
isto é, a porta tinha-se fechado até outro
dia, que é aquele que acaba por nunca chegar, e então
as palavras caem no vazio, como se nunca tivessem
sido pensadas. No entanto, ao escrever-te para marcar
um encontro contigo, sei que é irremediável o que temos
para dizer um ao outro: a confissão mais exacta, que
é também a mais absurda, de um sentimento; e, por
trás disso, a certeza de que o mundo há-de ser outro no dia
seguinte, como se o amor, de facto, pudesse mudar as cores
do céu, do mar, da terra, e do próprio dia em que nos vamos
encontrar, que há-de ser um dia azul, de verão, em que
o vento poderá soprar do norte, como se fosse daí
que viessem, nesta altura, as coisas mais precisas,
que são as nossas: o verde das folhas e o amarelo
das pétalas, o vermelho do sol e o branco dos muros.

Nuno Júdice

Poesia Reunida, Dom Quixote, 2000

publicado por coquetteintelectual às 19:17

20
Ago 11

 

 

São perto de meio milhar de páginas inéditas que representam um verdadeiro achado para qualquer apreciador de literatura sem transigências e, muito especialmente, um bálsamo para os inúmeros devotos de Julio Cortázar, o escritor total a quem devemos livros como De Todos Os Fogos O Fogo, O Jogo Do Mundo e Volta Ao Mundo Em 80 Dias. A agitação com que o meio editorial acolheu a notícia da existência de textos raros e em primeira mão de Cortázar não deu lugar à decepção, como tantas vezes sucede quando são divulgados textos póstumos de escritores célebres. Entre poemas, cartas, entrevistas imaginárias e contos, o leitor encontrará sempre textos que lhe relembram a todo o instante a importância do autor argentino, capaz de, com uma simples frase, colocar em causa verdades ou visões que dávamos como certas. O que vemos em Papéis Inesperados é, antes de mais, um escritor em diferentes estados de desenvolvimento, razão pela qual nem todos os escritores revelam um interesse similar. Mais do que as décadas que separam alguns dos escritos aqui reunidos, importa destacar o modo inquieto e curioso como Cortázar sempre olhou o mundo, mesmo quando o prestígio crescente e o distanciamento físico face à pátria aconselhariam uma atitude mais cautelosa, algo inconcebível em quem desde cedo se propôs «não aceitar as coisas como dadas».

(...)

 

Texto: Sérgio Almeida

 

Julio Cortázar

Papéis Inesperados, Cavalo De Ferro, 2010

publicado por coquetteintelectual às 17:28

18
Jul 11

 

 

Deste livro de poesia de Helder Moura Pereira, o que permanece como 'impressão' é um tom, uma mono-tonia: um tom que não é bem o de uma melopeia, porque a música que há neste recitativo - e há bastante - é cheia de dissonâncias, refratária à harmonia. E, dizendo isto, estamos a sugerir que, aqui, a língua da poesia é posta à distância: a voz é baixa e sem ênfase, tudo tende para a prosa e para a língua comum. Veja-se, por exemplo, como se fala sem elevações, antes de uma prosaica crueza, de um amor perdido: "Quis pôr um ponto final, mas depois / escrevi um livro inteirinho a falar do tempo / em que éramos mais do que um mais um. / Do teu amor agora nem um cheirinho. / / Não era preciso pedir binóculos / para ver que toda a minha vida / estava feita num molho de bróculos. / E o coração desconcentrado na batida." Esta é a regra: o desencontro, a separação, o desgosto amoroso, a vida desencantada e quase a roçar o niilismo são a matéria exclusiva desta poesia, mas sem que a voz se erga acima da tonalidade baixa e repetitiva. E aqui residem simultaneamente as limitações e os conseguimentos desta poesia. Devemos reparar que muitos poemas pressupõem um interlocutor, criam uma situação dialógica. Mas o diálogo estabelece-se sempre com um ausente. É justo dizer que se trata de uma poesia desencantada em relação a si mesma, por vezes quase irónica, desprovida daquilo a que poderíamos chamar 'efetualidade', incapaz de fazer com que as coisas não sejam o que são. E esta determinação 'coisal' - material, quotidiana, contigente - é o que alimenta o discurso destes poemas, que se prolongam sem inflexões, rente a uma dimensão prosáica, evitando elevações poético-retóricas.

 

António Guerreiro

 

Helder Moura Pereira

Se As Coisas Não Fossem O Que São, Assírio & Alvim, 2010

  

publicado por coquetteintelectual às 18:59

27
Jun 11

 

 

Um ano depois de "Revolutionary Road" (1961), Richard Yates publicou uma colectânea de contos: "Onze Tipos de Solidão", género a que regressaria em 1981 com "Liars in Love". Yates nunca conseguiu repetir o êxito da obra de estreia, mas os romances e contos que escreveu formam um conjunto coerente e equilibrado: seguem uma estética estritamente realista e uma orientação muitas vezes autobiográfica, nascem de uma construção meticulosa de cenas e personagens e revelam um acentuado gosto pelos diálogos banais e os detalhes significativos. Tanto os romances como os contos se circunscrevem a um universo remediado, medíocre, comovente, com variações sobre diferentes 'tipos de solidão', que são também diferentes formas de humilhação.

(...)

Estas histórias americanas da década de 50 opõem sempre a realidade do fracasso à mitologia do sucesso, conceito dominante da América de Einsenhower. Alguns dos protagonistas de "Onze Tipos de Solidão" vêm do tempo da guerra, mantêm um certo orgulho antiquado, uma ideia de integridade, mesmo que possam ser por vezes quase mitómanos. Mas nestes contos aparece sempre qualquer coisa nova, qualquer coisa que muda, que se rompe, que irrompe. E não é só o avanço narrativo que cria esse ambiente de tensão, são os pequenos sinais, a conversa de circunstância, um gesto desajeitado, uma bebedeira loquaz.

(...)

Todos os 11 contos são cuidadosamente carpinteirados, às vezes previsíveis, às vezes tocantes, e sempre genuínos.

 

Texto

Pedro Mexia

 

publicado por coquetteintelectual às 12:32

15
Mai 11

 

 

Envergando um longo vestido leve de cor púrpura, com bainha franjada e em ziguezague, Orla fumava furiosamente, tomava notas abundantes e levantava-se de um salto de vez em quando para rabiscar algum pormenor pertinente numa das inumeras folhas de papel presas nas paredes do gabinete. Providenciando um relato fluido dos acontecimentos da semana anterior, e a esforçar-se ao máximo para os fazer soar cativantes, Millie encontrava-se sentada na chaise-longue e estendia-lhe as canetas de feltro das diversas cores para que Orla, que passava rapidamente por ela, pudesse agarrar na que correspondia a cada personagem.

Bem, um relato fluido, da maioria dos acontecimentos da semana anterior. Millie tinha decidido que Hugh não devia ser incluído em nada daquilo. Contudo, estava a sentir-se um bocadinho culpada, interrogando-se se seria uma atitude traiçoeira.

Afinal, Orla estava a pagar-lhe bastante dinheiro pela versão integral da sua vida e ali estava ela, deixando de fora a pessoa que estava presentemente a perturbá-la.

Não que Hugh estivesse ciente do facto, é claro.

Esperava ela sinceramente.

(...)

De qualquer modo, ela não ia contar a Orla e ponto final. E, decerto, deixar alguém de fora não era enganar. Inventar personagens, inventar acontecimentos, fingir que tinham acontecido coisas quando não tinham - bem, isso é que era enganar. Seria uma atitude realmente enganadora, especialmente quando o que Orla queria era material sobre a vida real.

Por isso não tinha mal, tranquilizou-se Millie.

(...)

 

Jill Mansell

Romance Arriscado, Edições Chá Das Cinco, 2010 

publicado por coquetteintelectual às 12:44

11
Mai 11

 

(...)

Leio de mais. Oiço de mais. Vejo de mais. Estou parado de mais, recebendo mais do que consigo receber.

O céu parece-me demasiado azul. A música é mais triste do que mesmo, os mais tristes, precisaríamos.

Deixem-me sair daqui. A única coisa que sei fazer é sentir. Preciso que me ensinem a enganar-me. Preciso que me ensinem a interromper.

Vivo de mais. Durmo de menos. Acordo para acordar os outros. É como se a luz me acompanhasse. É como se o sol, quando nascesse, viesse propositadamente acordar-me.

Estou sozinho de mais. Nas minhas estrelas não há noite nem amor. Tenho as mãos vazias, viradas para o céu, como se tivessem recebido a lua, como se tivessem ficado encharcadas da tinta da escuridão.

Esta música afastou-me da tua respiração. O teu cabelo levanta e sossega, sossega e levanta, espalhado pelo lençol, como se fosse distribuído pelos meus dedos, que sobem por debaixo dos cobertores, para te conhecer e tocar.

 

Miguel Esteves Cardoso

O Amor É Fodido, Assírio & Alvim, 2001 

publicado por coquetteintelectual às 21:15

01
Mai 11

 

 

Tenho saudades do calor ó mãe que me penteias
Ó mãe que me cortas o cabelo — o meu cabelo
Adorna-te muito mais do que os anéis

Dá-me um pouco do teu corpo como herança
Uma porção do teu corpo glorioso — não o que já tenho —
O que em ti já contempla o que os santos vêem nos céus
Dá-me o pão do céu porque morro
Faminto, morro à míngua do alto

Tenho saudades dos caminhos quando me deixas
Em casa. Padeço tanto
Penso tanto
Canto tão alto quando calculo os corpos celestes

Ó infinita ó infinita mãe

 

Daniel Faria

Dos Líquidos, Quasi Edi, 2003

publicado por coquetteintelectual às 12:00

29
Abr 11

 

Chove...

 

Mas isso que importa!,

se estou aqui abrigado nesta porta

a ouvir na chuva que cai do céu

uma melodia de silêncio

que mais ninguém ouve

senão eu?

 

Chove...

 

Mas é o destino

de quem ama

ouvir um violino

até na lama.

 

José Gomes Ferreira

Poesia II 

 

publicado por coquetteintelectual às 17:53

20
Abr 11

 

Tenho usado as palavras para tudo quanto me falta. Sei que, por muita ilusão, me convenci a vida inteira de que aludir às coisas era já um pouco possuí-las e pertencer-lhes, como um modo de sonhar acordado que, para mim, funcionou e me permitiu sempre alguma felicidade.

Os textos , por isso, foram-me reiteradamente úteis, entre serem capazes de inventar as maiores fantasias como de explicarem também a mais evidente realidade. Em certas alturas, os textos foram tudo, tiveram o ofício de se tudo, sobretudo exterminando uma solidão para que me remetiam a timidez e um desajeitado modo de ser. Isso, por si só, haverá sempre de fazer de mim o mais grato dos homens a isto que é ler e escrever. Ficarei sempre grato aos livros.

Sou eminentemente outro após um livro, um que escreva ou um que leia. Procuro nas palavras aquilo que me acrescente, por me faltar, que proponha o que nunca lera, o que nunca pensara e assim me elucide melhor, me suscite a questão e incentive à procura de uma resposta. A aventura dos livros é toda essa. A contínua descoberta da infinitude dos assuntos, da infinitude do pensamento, que deve ensinar-nos a aceitação, essa coisa que por outra palavra muitos chamam de tolerância. A leitura é toda ela um exercício de contacto com o outrora desconhecido e pretende, acima de todas as coisas, a partilha, um reconhecimento de lugar, como um respeito mútuo. A aceitação. Ler é praticar a sociedade. Ler é efectivar a sociedade. É receber o mais depurado dos pensamentos de que alguém foi capaz e ponderar, ainda que tantas vezes ludicamente, como a vida foi, como é, e como poderia ser melhor. Ler é ter passado e fazer futuro.

(...)

 

valter hugo mãe

 

fnac MAG, Número 2, Abril 2011       

publicado por coquetteintelectual às 14:36

19
Abr 11

(...)

Monte dos Vendavais é o nome da residência do senhor Heathcliff (e é bem significativo do tumulto atmosférico a que está exposta quando há temporal). Na verdade, o sítio não pode ser mais arejado; bem pode avaliar-se a força com que o vento norte sopra ali pela inclinação dos abetos enfezados existentes atrás da casa e pelo renque de espinheiros raquíticos que, de braços estendidos para o mesmo lado, parecem pedir a esmola do sol. O arquitecto obviou a este incoveniente construindo um edíficio bastante sólido. As janelas estreitas são profundamente cavadas na parede, e as esquinas estão defendidas por pedras largas e salientes.

(...)

Entrámos directamente na sala de estar sem passarmos por nenhum corredor ou vestíbulo. Essa área, a que chama aqui «a casa», inclui geralmente a cozinha e uma sala de estar, mas creio que no Monte dos Vendavais a cozinha foi relegada para outro lugar; pelo menos ouvi rumor de vozes e tilintar de utensílios culinários lá para o interior. Em volta da lareira enorme não notei sinais de que aí fervesse, cozesse ou assasse, nem vi reflexos, nas paredes, de caçarolas de cobre ou passadores de folha. (...) Por cima da lareira estavam espingardas velhas, fora de uso, e duas pistolas de arção; e, em jeito de adorno, postas no rebordo, três caixas de chá pintadas de cores vivas.  O chão era de pedra branca e lisa. Havia cadeiras de espaldar alto e formato antigo, pintadas de verde, e uma ou duas escuras, pesadas, perdidas na sombra. Debaixo do aparador descansava uma perdigueira rodeada de cachorrinhos turbulentos, e noutros cantos viam-se mais cães.*

(...)

 

* O excerto é extraído do exemplar da Relógio D'Agua Editores, de 2001.

 

Emily Bronte

O Monte Dos Vendavais, Editorial Presença, 2009  

publicado por coquetteintelectual às 16:01

18
Abr 11

Dizem que não há motivos racionais, talvez seja verdade. Caminhava para ti hipnotizado, fascinado por razões que ainda ignoro. Impingem-nos a ideia de que os opostos se atraem; eu não acredito. Não acredito em nenhuma dessas verdades vendidas em cartazes, filmes e séries. Outrora sim, agora não. Fiquei sozinho de olhos desvendados. A luz queima-me, Elisa. Porque tiveste de me ensinar? A ignorância é feliz, sabes. Iludido não percebo, não penso para além dos racíonios viciados e falaciosos. Há tanto alívio, tanta simplicidade em seguir as massas. Era assim antes de ti. Mudaste tudo, alteraste-me as regras e por ti, por tua causa, tua culpa, a velha vida é impossível.

Não, de facto não sei porque me apaixonei por ti, mas sei porque te amo. Lembro-me do início e do que veio depois, de tudo, até das tuas cores.

(...)

Chegavas-me como sonho ou pesadelo, fazias-me acordar e exasperar por voltar a adormecer. Queria-te de novo, cruel ou doce não me interessava desde que pudesse flutuar nessas correntes com a impressão frenética de te estar prestes a agarrar. Se te apanhava o braço, ou o tornozelo ou o pulso, despertava antes de poder continuar. Quase sempre eras inalcançável. Percorri cenários de escombros, de ruínas esquecidas, de encantos e horrores, cruzei incendiado terra, água e ar, rasgaram-me e dilaceraram-me, fui atirado para abismos de alucinação, arrastei-me soterrado em lamas, tudo para ser arrancado às malhas da inconsciência sem mais do que um vislumbre teu.

(...)

 

Inês Botelho

O Passado Que Seremos, Porto Editora, 2010  

publicado por coquetteintelectual às 21:27

17
Abr 11

 

SETE (grandes) escritores: Francisco Duarte Mangas, Jacinto Lucas Pires, João Tordo, Manuel Jorge Marmelo, Moacyr Scliar, Patrícia Portela e Sérgio Almeida. Sete (inéditos) contos: Azul como uma laranja, A maldição de Charles Negrão, Memórias de um Jornalista Desportivo na Reforma, Natch, A Copa do Mundo É Nossa, O Jogo e Paraíso Futebol Clube. Assim se faz (sublime) este Fora de Jogo, editado pela Caminho das Palavras.

O futebol passa (enleante) por todas as suas páginas. De vez em quando também está lá A Bola - a abrir a linha aos golpes de génio que se vão descobrindo, encantadores, pelo caminho, por exemplo, quando Duarte Mangas escreve:

Borges, se voltasse ao mundo dos vivos e da luz, talvez lhe destinasse um poema. Nos olhos de Di Maria foge tristeza longínqua. Épica.

A regra é a surpresa - que pode ser Lucas Pires a embrulhar-se (deslumbradamente) no tom e no toque brasileiro com que conta a maldição de Negrão, começando-a assim:

Minha tentação é falar que não fui eu não, foi o meu corpo...

E não muitos parágrafos passados escapa a revelação:

Da Minha rotina fazia parte um jogo, um divertimento, vá lá, uma brincadeira ocasional (duas, três vezes por semana) com um grupinho de quatro, cinco meninas, funcionárias de um serviço chamado Seis Seis Seis Sensualidade & Ternura Ilimitada. Uma pequena-média empresa que apontou ao mercado do amor rápido...

O que acontece depois? O melhor é ler - para crer...

Há memória (romanceada) de Tordo, «jornalista desportivo na reforma», o olhar (desconcertante) pelos bastidores e por um certo mundo-cão - e entre várias outras, a história (deliciosa) de Gabriela Hortênsia que é Amâncio a marcar um golo ao Benfica:

A minha mulher disse-me que os jornalistas desportivos - e os comentadores e os treinadores, e os homens em geral - eram todos cegos ou estúpidos ou mesmo cegos e estúpidos, por não serem capaz de perceber que Amâncio era, na realidade, uma mulher. (...) Olhou-me com desprezo, apontou para o ecrã e disse: «Olha-me aquelas pernas. Achas que são pernas de homem?». Olhei para o ecrã e titubeei. «E vê-se mesmo que está a usar um espartilho para esconder as mamas!». Na verdade ela estava certa e estava também errada. (...) Acabei por descobrir que Amânsio tinha, realmente, sido uma mulher - e das bonitas. Descobri também que trabalhara num bar de alterne em Águeda e que, depois de uma operação ao sexo ter sido «desmamada» (foi esta a expressão usada por um certo repórter do jornal O Crime para a operação de redução mamária - e, a esse respeito, a minha mulher enganara-se), fora integrada na equipa de futebol do Beira-Mar...

(...)

É preciso revelar mais - para se ficar com a ideia do que se pode descobrir nestas 144 páginas?!...

 

Por

António Simões

 

Fora De Jogo, Caminho Das Palavras, 2010    

publicado por coquetteintelectual às 17:18

16
Abr 11

 

Toda a escrita autobiográfica é, por definição, um desenho inacabado.

Porque se baseia entre duas moradas de tempo, o tempo narrado e o tempo da narração, isto é, o passado e o presente, que esse mesmo presente busca recriar.

Tal como a análise psicanalítica levada a cabo pelo paciente frente ao psicanalista, o sujeito tenta identificar-se com aquele que foi, ou julgou ser, procurando do mesmo passo destrinçar os fios da sua identidade a fim de melhor a elucidar.

Numerosos são os rumos possíveis para lá chegar. Em linha recta ou por desvios; por caminhos batidos ou por atalhos de acaso.

Nestes últimos se insere a metodologia adoptada pelo americano Joe Brainard com a insistente multiplicação dos seus I remember, "lembro-me disto, lembro-me daquilo lembor-me de que...".

Ao seleccionar reminiscências aparentemente sem nexo, onde acontecimentos históricos se juntam a episódios pessoais e com eles se confundem, Brainard tenta recuperar e saber e o sabor de outros tempos - tempos que foram seus, que ainda, por momentos, lhe pertencem... Pesquisa em forma de inquérito que depressa se desdobra num inventário sem fim.

Nesta formulação tão rica de ambiguidades e, por isso mesmo, tão fecunda no plano do imaginário, que é também o da memória das coisas revividas, se inspirou por seu turno o francês Georges Perec para o seu Je me souviens.

Ninguém melhor do que Perec, espírito singular e cuja obra é toda ela, por razões pessoalíssimas, uma incessante e dolorosa retrospectiva, para levar por diante semelhante tarefa embora sabendo-a de antemão falível. Porque parcelar e incompleta.

Ao enumerar de forma deliberadamente fragmentária o rol de mil recordações - sendo cada uma delas uma interrogação sem resposta -, os autores acima citados procuram à sua maneira exumar e reconstruir uma unidade perdida. Só se apreende a memória multiplicando as memórias dela, e toda a autobiografia contém traços de autoterapia.

(...)

 

Marcello Duarte Mathias

ACT 16 Escrever A Vida. Verdade E Ficção, Campo Das Letras

    

publicado por coquetteintelectual às 15:49

12
Mar 11

 

Imagem:

 

Tornou-se um lugar comum comparar Alice Munro (n. 1931) com Tchékhov: partilham o gosto pelo realismo lírico, pela inovação que rejeita o experimentalismo e pela supremacia do mundo interior das personagens sobre a construção do enredo. É a atenção à vida secreta das protagonistas que lhe permite revelar tanta coisa através de contos onde aparentemente muito pouco acontece. O elemento autobiográfico é determinante nas suas histórias que analisam as distinções de classe e costumes típicos da sociedade canadiana dos anos 60: as protagonistas são, como ela, dotadas de uma invulgar capacidade de observação e ironia. Demasiada Felicidade reúne 10 contos inéditos da vencedora do Man Booker Prize 2009.

LAE

 

Alice Munro

Demasiada Felicidade, Relógio D'Água, 2010

 

publicado por coquetteintelectual às 22:12

19
Fev 11

 

Com medo de o perder nomeio o mundo,

Seus quantos e qualidades, seus objectos,

E assim durmo sonoro no profundo

Poço de astros anónimos e quietos.

 

Nomeei as coisas e fiquei contente:

Prendi a frase ao texto do universo.

Quem escuta ao meu peito ainda lá sente,

Em cada pausa e pulsação, um verso.

 

Vitorino Nemésio

Quinze Poetas Portugueses Do Séc. XX, Assírio & Alvim, 2004  

publicado por coquetteintelectual às 12:34

05
Fev 11

 

Ler os contos de Katherine Mansfield é caminhar entre crianças asfixiadas pela educação tradicional, adolescentes de sonhos impossíveis, soldados de fardas ridículas, mulheres que esboçam gestos de revolta e velhos nos confins do tempo. É sobre estes «seres sem história» que Katherine Mansfield escreve, relevando o drama oculto na aparência dos seus gestos usuais. E todo o seu condão está nessa capacidade de riscar fósforos na escuridão dos dias, iluminando recantos obscuros, com ironia e emoção.

Nascida em 1888, amiga de Virginia Woolf e D. H. Lawrence, contemporânea de um James Joyce que admirava e leitora atenta de Tchékhov, que morreu quando ela começava a escrever, Katherine Mansfield participou na renovação da difícil arte do conto, ajudando-o a libertar-se da moral victoriana e do clássico enredo e dissolvendo a rigidez das perspectivas em sensações e recordações em subtil relação com a realidade exterior.

Esta renovação foi apoiada numa técnica caracterizada pela economia de meios, as bruscas mudanças dramáticas, a capacidade de criar situações com apenas algumas linhas e um poder de observação que lhe permitia captar os mais variados modos de expressão.

(...)

O encanto da maior parte das narrativas de Katherine Mansfield não está apenas em nos desenvolver um mundo passado, mas em nos revelar com subtileza muitos sentimentos que se mantêm sob a aparência alterada das coisas.

Francisco Vale

 

Contos De Katherine Mansfield, Relógio D'Água, 2002

        

publicado por coquetteintelectual às 15:55

01
Fev 11

 

Rei Édipo de Sófocles é, sem dúvida, a peça mais célebre do teatro antigo - mais em função das interpretações discutíveis que, no século XX, se fizeram a seu próposito, do que dos méritos indiscutíveis da obra enquanto teatro ou literatura. Freud é, efectivamente, o nome a que se associa, hoje o herói tebano, facto que é tanto mais insólito e absurdo quanto mais reflectirmos sobre a peça de Sófocles, a qual leva à conclusão inelutável (e, para muitos, surpreendente) de que Édipo, de facto, não sofria do complexo que lhe apropriou indevidamente o nome.

É que toda a questão do Rei Édipo de Sófocles reside no facto de Édipo ter cometido os crimes que o celebrizaram sem ter consciência de que os estava a cometer. De resto, uma leitura atenta da peça levar-nos-ia a postular, antes, a existência de um "complexo de Jocasta", pois é ela que profere os famosos versos que provocaram a ideia luminosa de Freud, cuja essência remete para a noção de que muitos homens ter-se-iam unido às mães em sonho, coisa perfeitamente natural... para Jocasta.

É ela que percebe mais cedo que o filho a verdadeira natureza do seu parentesco, que está longe de se circunscrever à relação normal entre marido e mulher. O problema de Jocasta não é tanto o de saber que está casada com o filho; é muito mais o de impedir que Édipo descubra essa realidade aberrante, tentando desse modo evitar que a desgraça se abata totalmente sobre a família real de Tebas.

(...)

 

Frederico Lourenço

Grécia Revisitada, Livros Cotovia, 2004     

publicado por coquetteintelectual às 17:00

31
Jan 11

 

A ironia ensina a sabotar uma frase

Como se faz a um motor de automóvel:

Se retirares uma peça a máquina não anda, se mexeres

No verbo ou numa letra do substantivo

A frase trágica torna-se divertida,

E a divertida, trágica.

Este quase instinto de rasteirar as frases protegeu-me,

Desde novo, daquilo que ainda hoje receio: transformar

A linguagem num Deus que salve, e cada frase num anjo

Portador da verdade. Tirar seriedade ao acto da escrita

Aprendi-o na infância, tirar seriedade aos actos da vida

Comecei a aprender apenas depois de sair dela, e espero

Envelhecer aperfeiçoando esta desilusão.

 

Gonçalo M. Tavares

1, Relógio D'Água Editores, 2004

 

publicado por coquetteintelectual às 21:23

30
Jan 11

 

O partido reformista apareceu um dia, de repente, sem se saber como, sem se saber porque. Era um estafermo austero, pesado, de voz possante. Ninguém sabia bem o que aquilo queria. Alguns diziam que era o sebastianismo sob o seu aspecto constitucional; outros que era uma seita religiosa para a criação do bicho-da-seda. Corriam as mais desvairadas opiniões. Apresentava-se tão grave, tão triste, tão intransigente que no Chiado afirmava-se ser um personagem da história romana - empalhado!

Ninguém se aproximava dele no meio da imensa impressão que causava nos moços de fretes. Por fim, pouco a pouco, alguns jornalistas mais curiosos foram-se chegando, começaram a tocar-lhe com o dedo, a ver se era de pau. Era de carne, verdadeiro. Percebeu-se mesmo que falava. Então os mais audaciosos fizeram-lhe perguntas.

- Senhor - disseram -, espalhou-se por aí que vindes restaurar o País. Ora deveis saber que um partido que traz uma missão de reconstituição deve ter um sistema, um princípio que domine toda a vida social, uma ideia sobre moral, sobre educação, sobre trabalho, etc. Assim, por exemplo, a questão religiosa é complicada. Qual é o vosso princípio nesta questão?

- Economias! - disse com voz potente o partido reformista.

Espanto geral.

- Bem! E em moral?

- Economias! - bradou.

- Viva! E em educação?

- Economias! - roncou.

- Safa! E nas questões de trabalho?

- Economias! - mugiu.

- Apre! E em questões de jurisprudência?

- Economias! - rugiu.

- Santo Deus! E em questões de literatura, de arte?

- Economias! - uivou.

Havia em torno um terror. Aquilo não dizia mais nada. Fizeram-se novas experiências. Perguntaram-lhe:

- Que horas são?

- Economias! - rouquejou.

Todo o mundo tinha os cabelos em pé. Fez-se uma nova tentativa, mais doce.

- De quem gosta mais, do papá, ou da mamã?

- Economias! - bravejou.

Um suor frio humedecia as camisas. Interrogaram-no então sobre a tabuada, sobre a questão do Oriente...

- Economias! - gania.

Foi necessário reconhecer, com mágoa, que o partido reformista não tinha ideias. Possuía apenas uma palavra, aquela palavra que repetia sempre, a todo o propósito, sem a compreender. O partido reformista é o papagaio do Constitucionalismo.

 

Farpa IV (Maio de 1871), pp. 39/40

 

Eça de Queiroz

Uma Campanha Alegre, Livros Do Brasil

    

publicado por coquetteintelectual às 21:46

29
Jan 11

 

 

Foram coro convocador de convulsões do corpo e da consciência. Fúrias devastadoras re-encarnadas numa polifonia em que se misturavam vozes de escritoras, anónimas, avatares de feminismo, sobre o grande tema-tabu da submissão da mulher, e as várias violências a que era sujeita - fossem estas a pressão de mentalidades tacanhas, do espartilho fascista, do país colonial que gostava de donas de casa à espera dos maridos e dos filhos soldados, da violência doméstica ou, ainda, dos calvários da pobreza ou do aborto. Novas Cartas Portuguesas (D. Quixote, 415 pásg., 16,95), de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, livro proibido, revolucionário e fundador do feminismo português, renasce agora uma edição anotada (com 200 entradas, índice, bibliografia, e o prefácio de Maria de Lourdes Pintasilgo, escrito para a re-edição de 1980), com organização da poetisa e docente universitária Ana Luísa Amaral. À altura da sua publicação, pela editora Estúdios Cor, então comandada pela escritora Natália Correia, num abril de 1972 sem cravos revolucionários à vista, a edição foi apreendida pela censura. Pornografia, foi o epíteto e a acusação no processo interposto contra as autoras.

A subversão não passava «só» pela ousadia do discurso no feminino. Nem «apenas» pelo despudorado e desafiador desmistificar das supremacias e mitologias másculas, dentro e fora de portas - ou de camas. As três Marias, então já com nome literário feito, desenganavam expectativas domesticadoras acerca da sua obra. Mas também subvertiam as convenções literárias: Novas Cartas Portuguesas desarrumava gavetas, tricotando tanto os registos da carta, do conto, da poesia, como do romance e do discurso ideológico. As cartas que citavam são as de Soror Mariana Alcoforado (1640-1723), a freira portuguesa que, fechada num convento de Beja, escreveu as cinco ardentes e explícitas Lettres Portugaises ao amante que a abandonou, o oficial francês Noel de Chamilly.

A re-edição tam também um projeto associado: NCP, 40 anos Depois, dirigido por Ana Luísa Amaral. Até 2013, investigar-se-á o percurso e a influência da obra no mundo, e prevêm-se traduções (inglês e italiano) e a publicação de NCP entre Portugal e o Mundo (livro associado a um colóquio) e New Portuguese Letters to the World, International Reception).

 

Texto de Sílvia Souto Cunha  

    

publicado por coquetteintelectual às 18:11

 

Caros leitores

 

Desde já, apresento, as minhas sinceras desculpas a todos vós.

Ao longo deste período de ausência, encontrei-me a desenvolver e continuo a explorar novos projectos.

Espero mais uma vez não vos desiludir.

Bem Haja.

 

Coquette Intelectual

publicado por coquetteintelectual às 18:07

29
Set 10

 

Uns meses antes, Gerry Rubato tinha tudo o que julgava precisar na vida. Continuava apaixonado pela namorada dos tempos da faculdade, com quem casara há quase vinte anos, tinha uma filha inteligente e de espírito autónomo e a novidade de um novo filho a caminho. Foi então que tudo mudou drasticamente. Sem grandes explicações, a filha fugiu com o namorado, um rapaz mais velho do que ela, e a seguir, um mês após o nascimento do filho, a mulher faleceu de repente. Agora, Gerry precisa de ser tudo para o filho recém-nascido, enquanto se debate com duas perdas que mal compreende. E quando uma mulher entra na sua vida como amiga e o seu relacionamento se inclina para algo mais, Gerry tem de redefinir tudo o que sabe sobre si próprio, o amor, a lealdade e os seus sonhos. Carregado de ternura, humor, sabedoria e personagens inesquecíveis o romance "Ficarei À Tua Espera" promete arrebatar os corações dos leitores.

 

Michael Baron

Ficarei À Tua Espera, Quinta Essência, 2010

publicado por coquetteintelectual às 21:38

06
Set 10

 

 

(...)

O que se consumou neste gesto ao mesmo tempo doloroso e prudente foi um volume que abrange os anos de 1947 a 1963 (outros dois volumes se seguirão), ou seja, desde a Sontag adolescente até ao momento em que começa a publicar. A bem dizer, esta adolescente nunca o foi verdadeiramente, pelo menos segundo os padrões que hoje nos servem de medida: aos 14 anos está mergulhada em Gide, em Rilke e na "Montanha Mágica". A figura da intelectual americana requintada, com os olhos postos na tradição literária e no pensamento europeus, não é uma construção da fase madura da escritora, ligada a outros dois epítetos que a inscrevem numa categoria da intelligentsia americana: judia e nova-iorquina; começa a surgir logo nos seus anos de formação, de uma precocidade notável. Mal fez 16 anos, foi admitida na Universidade de Berkeley e passou depois para a Universidade de Chicago. 

Dedicando muitos dos apontamentos diarísticos às leituras, à sua formação intelectual (e mantendo um vigor olímpico que a leva a fazer listas intermináveis de livros e a riscar os que já leu como quem queima etapas), não é, porém, nesse aspecto que o diário sobressai; esse é mesmo o seu lado mais conforme às expectativas. A outra dimensão que neste diário tem parte privilegiada e surpreende muito mais diz respeito às relações sexuais e passionais de Sontag com outras mulheres, desde que se descobriu como homossexual, aos 16 anos, em Berkeley. É, aliás, no momento em que ganha consciência de que as suas tendências lhe vão ditar o resto da vida que Sontag se sente renascer. A 31 de Maio de 1949, regista estas palavras: "Agora sei a verdade - sei o quanto amar é bom e legítimo -, foi-me, de certa forma, dada autorização para viver. Tudo começa a partir de agora - Renasci." Que Sontag era homossexualç não é novidade nenhuma (é público que os seus últimos anos foram vividos com a fotógrafa Annie Leibovitz), mas não era de esperar que alguém que publicamente foi muito discreta (o que lhe valeu violentas críticas por parte dos movimentos que lutavam pelos gay rights) tivesse vivido tão centrada nesse aspecto da sua existência. E, aí, o que nos surge não é a figura altaneira e soberana da intelectual, mas a amante fragilíssima, sempre em estado de súplica para não ser abandonada e com medo de ser destruída. Inesperado, neste contexto, é o anúncio que faz a 2 de Dezembro de 1950, de que ficou noiva de Philip Rieff, com quem casou logo a seguir. Oito anos durou este casamento, durante o qual Sontag faz uma estada na Europa (em 1958) e retoma o seu romance com H. (a sua iniciadora em Berkeley) em Paris. Da sua vida conjugal e da separação conflituosa da custódia do filho, quase nada passou para o diário, a não ser esta consideração geral: "O casamento é uma espécie de caça tácita em casais. O mundo todo em casais, cada casal na sua casinha, a tomar conta dos seus pequenos interesses e oprimidos na sua privacidadezinha - é a coisa mais repugnante do mundo."

 

Texto de António Guerreiro    

 

Susan Sontag

Rensacer - Diários E Apontamentos 1947-1963, Quetzal, 2010

publicado por coquetteintelectual às 18:09

20
Ago 10

A cabeça de um escritor é um sítio inabitável, cheio de sombras negras que se devoram umas às outras, remorsos, fantasmas, dores, insignificâncias em que não reparamos e ele repara, sensações, luzes, criaturas sem nexo. Usam o papel para ordenar este caos, vertebrar o desespero, dar ao ilógico uma coerência lógica e mostrar o nosso retrato autêntico em cacos de espelho, fundos de poço trémulos, superfícies convexas em que temos de emagrecer por nossa conta. Não se pode estender a mão a quem lê, tem de se caminhar sozinho num nevoeiro aparente em que, pouco e pouco, as coisas se arrumam nos seus lugares. Em nenhum bom livro há personagens e história: quando muito aparência de personagens e história, usadas para tornar mais clara a vertigem do que somos. Tudo se passa no interior do interior e portanto não devia haver cursos de escrita

(um paradoxo nos termos)

mas de leitura criativa. Conheço menos bons escritores do que bons leitores, um bom leitor é uma espécie muito rara. Um autor do século dezanove dedicava os seus trabalhos aos felizes poucos, esxpressão roubada a Shakespeare

(we few, we happy few, we band of brothers)

capazes de nadarem ao seu lado em águas muito escuras e de regressarem à tona de mãos cheias. Um livro é mais uma orelha que uma voz onde, no fim de contas, é o bom leitor que conversa. O livro escuta. As páginas são ouvidos pacientes que nos guiam através da liberdade do silêncio, onde as nossas frases se reflectem e regressam com um sentido novo. O bom leitor só recebe na medida em que dá e a qualidade da obra depende desta troca constante, do fluxo e refluxo das emoções partilhadas. Temos de ser um agente activo do livro, fazê-lo nosso até que se torne, como queria Rilke de quem não sou admirador, excepto em raras passagens das Elegias, sangue, olhar e gesto. Se não for assim é uma comédia de enganos, um passatempo inócuo como quase tudo o que em Portugal se impinge, porque a maior parte dos editores são ignorantes ou vigaristas, oferecendo ao público pacotilha impressa: um bom editor, tal como um bom leitor, é mais raro que um bom livro. Uma editora comercialmente bem sucedida é má, ou então tem de fazer compromissos. A casa alemã onde estou, por exemplo, possui um catálogo honesto, dividido em duas partes, literatura e best-sellers. O argumento temos de pôr as pessoas a ler é idiota: o que temos é de ensinar as pessoas a ler. Até Lenine compreendia isto, ao afirmar que a arte não tem de descer ao povo, é o povo que tem de subir à arte. Claro que não é apenas um problema português, é um problema universal. Pasmo com as listas dos tops: ficção, dizem elas, quando a ficção não existe a não ser nas obras rasteiras. Se me dissessem que escrevia ficção sentia-me insultado: ficção que tolice, é o mundo inteiro que a gente mete entre as capas de um livro. Vende menos? Decerto, mas há-de vender sempre. Se tivermos lado a lado, à nossa frente, Camões e o jornal, a tendência imediata é pegar no jornal, mas o jornal desaparece amanhã e Camões fica. Chamo jornalismo, explicava Gide, ao que é menos interessante amanhã do que hoje. E depois a Arte não é um desporto de competição: o editor que ponha numa cinta, por exemplo, cem mil exemplares vendidos, ou julga falar de sabonetes ou não é um editor. Se o livro for bom há-de vender muito mais do que isso: quanto terá vendido Ovídio até hoje? É apenas uma questão de tempo, porque os bons leitores existirão sempre, ainda que poucos.

(...)

 

António Lobo Antunes

Visão, Número 911, 19 A 25 De Agosto 2010  

publicado por coquetteintelectual às 17:12

18
Ago 10

(...)

Observemos, agora, o Shakespeare-poeta. Como tal, há que considerá-lo sob os seguintes aspectos: o sonetista, o poeta narrativo, o lírico das canções dispersas nas peças, o autor das meditações filosóficas - autónomas como poesia - de muitas personagens, e o dramaturgo usando o verso como instrumento de acção dramática. Este último, desenvolvendo o verso branco, adaptou-o às mais subtis variações da expressão e foi avançando desde uma metrificação rígida, muito apoiada em pomposidades marlowianas, até à fluidez absoluta das últimas peças, em que a metrificação às vezes se torna, na sua infinita variabilidade, verso livre moderno(13). O lírico das canções - tantas vezes confiadas aos clowns das comédias, que são das personagens mais graciosas de Shakespeare - serve-se, como atrás referimos, da tradição popular para criar prodígios de ironia, de musicalidade e de audacioso nonsense.

(...)

E é precisamente essa arte da meditação poética que faz a força e a grandeza daqueles trechos que, nas peças, se destacam como poesia em si mesma, e não apenas como elos condutores da acção. Nesses trechos, e em alguns sonetos também, atinge Shakespeare as alturas máximas da expressão poética. A densidade do pensamento, a concatenação impecável do discurso, a originalidade deslumbrante das analogias esclarecedoras de uma intuição complexa, a perfeita identidade do ritmo e da transposição verbal, a nobre firmeza da grandiçloquência magnificadora, tudo se conjuga harmoniosamente para tornar tais trechos exemplos inultrapassáveis da poesia como conhecimento de si mesma e do mundo.

(...)

Os sonetos repartem-se em três grupos: os primeiros 126 referem-se expressamente ao belo jovem, cujos favores o poeta busca, temendo a rivalidade de um outro poeta; os sonetos 127 a 152 são lamentos dirigidos a uma dark lady que o tortura com as suas esquivanças; os dois últimos são apenas elegantes fechos da sequência.

(...)

E Shakespeare, quem era ele?

Um actor, um dramaturgo, um poeta, vivendo numa época em que as circunstâncias, ao declinar o sonho de libertação do Renascimento, colocavam o homem perante as contradições dramáticas da sua liberdade. O mundo era um palco onde tudo seria possível, se a solidão não fosse o preço a pagar pelo papel na peça. Shakespeare pagou, pela sua humanidade, o mais caro preço: a despersonalização completa. Não importa saber quem era Shakespeare, porque ele é as suas criações, ele é a demonstração de que o homem pode, despersonalizando-se, acrescentar ao mundo natural o mundo humano.

(...)  

 

(13) Evolução análoga percorreu Milton, da poesia «metafísica» da sua juventude até à metrificação de Paradise Lost e, sobretudo, Samson Agonistes.  

 

Jorge De Sena

A Literatura Inglesa, Livros Cotovia    

publicado por coquetteintelectual às 17:24

Novembro 2012
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3

4
5
6
7
8
9
10

11
12
14
15
16
17

18
19
20
21
22
23
24

25
26
27
28
29
30


subscrever feeds
mais sobre mim

ver perfil

seguir perfil

6 seguidores

pesquisar neste blog
 
Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

blogs SAPO