"Quando Margarida chegou à Casa Azenha teve aquela sensação, não desconhecida mas sempre inquietante, de já ter estado ali.
(...)
Margarida sentiu um arrepio ao pensar nisto. Apalpou o colchão e encantou-se com o minucioso bordado dos lençóis de cambraia. Verificou a luz da mesa-de-cabeceira e foi à casa de banho fazer a sua toilette nocturna. Tomou um duche delicioso, enxugou-se com uma toalha de óptima felpa. Voltou para o quarto nua, pendurou uns jeans e uma t-shirt que tirou da mala para vestir no dia seguinte. De repente sentiu-se incomodada, como se alguém a observasse. E percebeu. Na parede fronteira à cama estava um quadro a óleo representando um homem moreno. Um belíssimo homem, por sinal, que, ao contrário das fotografias da cómoda, parecia bem vivo e a olhava com olhos trocistas. Ela conhecia o truque dos pintores que fazem com que as figuras dos quadros mirem os observadores para onde quer que estes se dirijam. Mas aquilo era demais. Não se tratava dos olhos vazios e inexpressivos que já vira tantas vezes, mas de um olhar bem vivo, irónico, crítico, apreciador, o olhar de um homem que conhece e ama as mulheres, e instintivamente Margarida foi à mala buscar um pijama e vestiu-o.
O que é que queres? perguntou, desafiadora. E ouviu nitidamente uma voz masculina, grave, doce, responder: tudo.
Ficou aterrada. Era muito estranho o que se passava ali. Meteu-se na cama, mas não conseguia despregar os olhos do quadro. Foi com mãos trémulas que tirou os brincos das orelhas e os posou na mesinha-de-cabeceira, ao lado do castiçal. Castiçal? Claro, para quando faltasse a luz. Que pelos vistos nunca faltava, porque a vela era nova. E o homem a olhar para ela. Tudo, continuava a dizer, agora em silêncio. Tinha-a visto nua, o que poderia esconder-lhe? A não ser o desejo que de repente a assaltou, e acreditou que, durante o sono, ele desceria do quadro e viria violá-la, amá-la com todas as forças, aventura de uma noite com um desconhecido, um feiticeiro, um fantasma.
(...)
A verdade é que o homem do quadro parecia ter uma inquietante semelhança com a pessoa por quem estava apaixonada, mas, quando se está louco de amor por alguém, parece-nos ver esse alguém em todo a parte.
O chá acabou por fazer efeito e dormiu até de manhã. Os lençóis de cambraia não guardavam qualquer sinal de violação ou de lutas amorosas, tão lisinhos e arrumados como se ninguém ali tivesse dormido. Margarida abriu os olhos e sentiu que qualquer coisa de muito estranho se passava consigo. Deixou-se ficar de olhos fechados, buscando a certeza de que não estava a enlouquecer. Para começar, não tinha o pijama vestido. Apalpou-se sem olhar e sentiu um tecido finíssimo, idêntico aos lençóis. Pôde perceber as rosinhas bordadas na gola, as nervuras do peitilho. Sentiu também que o tecido se lhe enredava nas pernas, como se de uma camisa de noite se tratasse. Tinha a certeza de ter vestido um pijama azul: casaco e calças. Mas quando ousou abrir os olhos e levantar a roupa e espreitar para dentro da cama, viu a longa saia cor-de-rosa cheia de babados. Foi ele, pensou. Está a fazer troça de mim. Mas quando olhou para a parede, resolvida a perder o medo e a pedir-lhe satisfações, o quadro não estava lá."
(...)
Rosa Lobato de Faria
As Esquinas Do Tempo, Porto Editora, 2008