Os acontecimentos projectaram a sua sombra algum tempo antes. Durante toda esta primavera e verão, quando eu passava no passeio da rua, um gato ruivo de aspecto miserável saia debaixo dum carro ou dum jardim, e ficava a olhar intensamente para mim, não querendo ser ignorado. Queria alguma coisa, mas o quê? Gatos nos passeios, gatos nos muros do jardins, ou aparecendo das portas, esticam-se e abanam as caudas, cumprimentam, acompanham-nos durante alguns passos. Querem companhia ou, se foram deixados na rua por donos sem coração, frequentemente aí ficando todo o dia ou toda a noite, podem socorro com um miado estridente, insistente e implorante, que significa que estão com fome, ou sede ou frio. Um gato enrolando-se nas nossas pernas numa esquina, pode estar a pensar se lhe será possível trocar uma casa pobre por uma melhor. Mas este gato não miava, apenas olhava, um olhar pensativo, directo, dos olhos amarelo-cinzento. Depois começou a seguir-me ao longo do passeio, hesitando, olhando para mim. Apresentava-se-me quando eu entrava e quando saía, e pesava-me na consciência. Teria fome? Trouxe-lhe alguma comida, que pus debaixo dum carro, e ele comeu um pouco, mas deixou o resto. No entanto, estava necessitado, desesperado, via-se. Teria ele uma casa na nossa rua, e seria uma má casa? Parecia estar a maior parte das vezes perto duma casa um pouco abaixo da nossa, e, uma vez quando uma mulher velha entrou ele entrou também. Portanto tinha casa. Mas continuou a seguir-me até ao nosso portão e uma vez, quando o passeio se encheu com uma onda de ruidosas crianças da escola, ele refugiou-se no nosso pequeno jardim da frente, aterrado, olhando-me enquanto eu entrava em casa.
Doris Lessing
Gatos E Mais Gatos, Cotovia, 1995