Vá lá. Hoje consegui chegar a horas a mais uma reunião para voltar a conferir a ausência do Bruno e os pormenores do Fábio. O agente Pereira e a directora da escola já me esperavam sentados à mesa de reuniões, atravancada no meio do meu gabinete. Não é um gabinete pequeno, o meu. Tem uma rasgada sobre a Rua Nova do Almada que o enche de luz. Cobri as paredes com desenhos feitos pelos alunos das escolas. Tenho dezenas e dezenas de cores atrás da minha secretária. E umas boas colunas de som que me ajudam a pensar. Ligo a aparelhagem mal me sento a trabalhar. Desta vez, fiz severa pontaria para não me atrasar, questiono-me: conseguiram adiantar-se ou serão os ponteiros do meu relógio que continuam a trair-me?
- A malta dos bairros não tem emenda. É que começam de pequeninos, doutora - e, enquanto assim o diz, o agente Pereira, magro e franzino, faz uma cara enjoada, como quem acaba de sair de uma traineira depois de ter andado toda a noite em alto mar.
As mangas do casaco azul pardacento, de tão compridas, a tocarem-lhe os nós dos dedos. O agente deixa solto no ar um imenso bocejo, após o qual leva uma unha à orelha, escarafunchando o seu interior num alívio prazenteiro. Não dve ser muito claro para ele porque raio teve de voltar ao gabinete da vereadora para depor, pois quem teria por função ou inerência de cargo ouvir os outros depor seria ele. Mas o que mais o confunde é a minha presença constante e a minha vontade demolidora de querer a todo o custo saber do rapaz.
Basta-me consultar a papelada em cima da mesa: nada de novo. Pouco mais se tinha avançado no caso. O comandante desinvestira - «ele há épocas com tanto serviço» - e mandara-o a ele fazer as vezes. Em bom rigor, queria lá saber do miúdo para alguma coisa.
Maria João Lopo de Carvalho
Adopta-me, Oficina Do Livro, 2007