(...)
Leio de mais. Oiço de mais. Vejo de mais. Estou parado de mais, recebendo mais do que consigo receber.
O céu parece-me demasiado azul. A música é mais triste do que mesmo, os mais tristes, precisaríamos.
Deixem-me sair daqui. A única coisa que sei fazer é sentir. Preciso que me ensinem a enganar-me. Preciso que me ensinem a interromper.
Vivo de mais. Durmo de menos. Acordo para acordar os outros. É como se a luz me acompanhasse. É como se o sol, quando nascesse, viesse propositadamente acordar-me.
Estou sozinho de mais. Nas minhas estrelas não há noite nem amor. Tenho as mãos vazias, viradas para o céu, como se tivessem recebido a lua, como se tivessem ficado encharcadas da tinta da escuridão.
Esta música afastou-me da tua respiração. O teu cabelo levanta e sossega, sossega e levanta, espalhado pelo lençol, como se fosse distribuído pelos meus dedos, que sobem por debaixo dos cobertores, para te conhecer e tocar.
Miguel Esteves Cardoso
O Amor É Fodido, Assírio & Alvim, 2001