Falas da escrita como se fosses médium.
É assim que me sinto muitas vezes. Consigo controlar a forma, mas não o conteúdo. Começo a contar e não sei para onde vou, as personagens apoderam-se da história, às vezes o livro acaba de forma inesperada. É como se a história e as personagens existissem noutra dimensão e, por um golpe de sorte, eu entrasse em sintonia com elas.
Como magia?
Sugeriram-me que pratique a escrita automática - deixar que a mão corra em estado de transe - mas ainda não tentei.
Alguma vez te hipnotizaram?
Tentaram, mas não consigo relaxar e acabo por hipnotizar o hipnotizador. (Muito séria.)
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Dizes que começas sempre a escrever sem um plano rígido, excepto em De Amor e de Sombra que foi um acto consciente de denúncia. Houve por acaso algum autor que te tenha influenciado mais do que os outros?
Ao longo da minha vida influenciaram-me as feministas europeias e norte-americanas, que definiram a minha personalidade, mas na literatura foram quase todos nomes masculinos. Gabriel García Márquez ensinou-me a liberdade de deixar voar a imaginação; José Donoso, de remexer entre os segredos de família; Mário Vargas Llosa, de recorrer aos truques do jornalismo; Pablo Neruda de descrever a paisagem e explorar o mundo dos sentidos; outros grandes autores latino-americanos, como Ernesto Sábato, Julio Cortázar, Jorge Luis Borges, Juan Rulfo, Carlos Fuentes, Octavio Paz, prepararam o meu caminho. As leituras da minha infância também me marcaram: os dois irmãos Salgari, Verne, London, Stevenson, Defoe, Wilde, Shaw, Twain e muitos outros. Eles transmitiram-me o gosto pelo drama, pelas personagens fortes, pela aventura, pelos argumentos contudentes; detesto a literatura minimalista. E depois Shakespeare, que li aos nove anos pelas mesmas razões que outras pessoas vêem telenovelas: para bisbilhotar a vida alheia.
E a sensualidade?
Veio no fio das leituras clandestinas de As Mil e Uma Noites e outros livros do género, na adolescência. Mais tarde procurei-a em Neruda, o poeta dos sentidos. Ninguém como ele para descrever um aroma, uma cor, um som.
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Falas às vezes dos teus «demónios». A que te referes?
Obsessões que todos nós temos e que, inevitavelmente, são transpostas para as páginas que escrevo. Às vezes refiro-me concretamente ao demónio da minha infância, lembra-te que, quando eu era criança, ainda a igreja católica pregava sobre o Diabo. As freiras aterrorizavam-me com as torturas do Inferno, mas já ninguém fala dessas coisas. Agora Satanás passou definitivamente de moda. Também mudaram os rituais, acabaram-se os latinórios e os paramentos episcopais, os padres andam de calças de ganga e as freiras pintam os lábios; de certa forma tenho pena, porque, se nos privarem dos pitorescos demónios e das cerimónias faraónicas, diminuirá o número de escritores. Nada melhor do que uma infância povoada de terrores para estimular a imaginação.
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Estão frequentemente patentes as componentes espirituais da tua obra. Além do catolicismo, existe alguma outra religião que te atraia?
O catolicismo também não me atrai nem me atraem outras religiões. Descobri que quanto mais deuses tem uma religião, mais tolerante é. Os piores crimes contra a humanidade foram cometidos em nome de um deus único. O Budismo seria atraente se não fosse tão machista como todas as outras religiões.
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Já experimentaste o transe de que falas?
Não, o transe é uma experiência que invejo. Mas devo esclarecer que não me identifico com o candomblé ou outras religiões semelhantes de cariz fatalista, que defendem que tudo o que acontece é por vontade de um deus, e nada se pode alterar. Sinto-me mais próxima da Teologia da Libertação, que tenta alcançar a justiça. Cristo é pelos pobres: é revolucionário.
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Celia Correas Zapata
Isabel Allende - Vida E Espíritos, Difel, 2001