Olha para o relógio que está em cima da mesa. Passaram quase duas horas. Ainda se sente vigorosa, embora saiba que no dia seguinte pode ler o que escreveu e achá-lo oco, empolado. O livro que temos na nossa imaginação é sempre melhor do que aquele que conseguimos passar para o papel. Bebe um gole de café frio e resolve ler o que escreveu até então.
Parece-lhe bastante bom, algumas passagens parecem-lhe mesmo muito boas. Tem esperanças excessivas, evidentemente - quer que este seja o seu melhor livro, aquele que corresponda finalmente às suas expectativas. Mas pode um único dia na vida de uma mulher comum transformar-se no suficiente para um romance?
Virgina bate ao de leve nos lábios com o polegar. Clarissa Dalloway morrerá, disso tem certeza, embora nesta fase inicial seja impossível dizer como ou sequer, precisamente, porquê. Está no entanto convencida de que ela porá fim à sua vida. Sim, ela fará isso.
Virginia pousa a caneta. Gostaria de escrever todo o dia, de encher trinta páginas em lugar de três, mas passadas as primeiras horas alguma coisa vacila dentro dela, e receia, se insistir para além dos seus limites, prejudicar todo o projecto. O deixe transviar-se para um reino de incoerência do qual talvez nunca possa regressar. Ao mesmo tempo, detesta passar qualquer das suas horas límpidas a fazer outra coisa que não seja escrever.
(...)
Michael Cunningham
As Horas, Gradiva, 2003