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O que se consumou neste gesto ao mesmo tempo doloroso e prudente foi um volume que abrange os anos de 1947 a 1963 (outros dois volumes se seguirão), ou seja, desde a Sontag adolescente até ao momento em que começa a publicar. A bem dizer, esta adolescente nunca o foi verdadeiramente, pelo menos segundo os padrões que hoje nos servem de medida: aos 14 anos está mergulhada em Gide, em Rilke e na "Montanha Mágica". A figura da intelectual americana requintada, com os olhos postos na tradição literária e no pensamento europeus, não é uma construção da fase madura da escritora, ligada a outros dois epítetos que a inscrevem numa categoria da intelligentsia americana: judia e nova-iorquina; começa a surgir logo nos seus anos de formação, de uma precocidade notável. Mal fez 16 anos, foi admitida na Universidade de Berkeley e passou depois para a Universidade de Chicago.
Dedicando muitos dos apontamentos diarísticos às leituras, à sua formação intelectual (e mantendo um vigor olímpico que a leva a fazer listas intermináveis de livros e a riscar os que já leu como quem queima etapas), não é, porém, nesse aspecto que o diário sobressai; esse é mesmo o seu lado mais conforme às expectativas. A outra dimensão que neste diário tem parte privilegiada e surpreende muito mais diz respeito às relações sexuais e passionais de Sontag com outras mulheres, desde que se descobriu como homossexual, aos 16 anos, em Berkeley. É, aliás, no momento em que ganha consciência de que as suas tendências lhe vão ditar o resto da vida que Sontag se sente renascer. A 31 de Maio de 1949, regista estas palavras: "Agora sei a verdade - sei o quanto amar é bom e legítimo -, foi-me, de certa forma, dada autorização para viver. Tudo começa a partir de agora - Renasci." Que Sontag era homossexualç não é novidade nenhuma (é público que os seus últimos anos foram vividos com a fotógrafa Annie Leibovitz), mas não era de esperar que alguém que publicamente foi muito discreta (o que lhe valeu violentas críticas por parte dos movimentos que lutavam pelos gay rights) tivesse vivido tão centrada nesse aspecto da sua existência. E, aí, o que nos surge não é a figura altaneira e soberana da intelectual, mas a amante fragilíssima, sempre em estado de súplica para não ser abandonada e com medo de ser destruída. Inesperado, neste contexto, é o anúncio que faz a 2 de Dezembro de 1950, de que ficou noiva de Philip Rieff, com quem casou logo a seguir. Oito anos durou este casamento, durante o qual Sontag faz uma estada na Europa (em 1958) e retoma o seu romance com H. (a sua iniciadora em Berkeley) em Paris. Da sua vida conjugal e da separação conflituosa da custódia do filho, quase nada passou para o diário, a não ser esta consideração geral: "O casamento é uma espécie de caça tácita em casais. O mundo todo em casais, cada casal na sua casinha, a tomar conta dos seus pequenos interesses e oprimidos na sua privacidadezinha - é a coisa mais repugnante do mundo."
Texto de António Guerreiro
Susan Sontag
Rensacer - Diários E Apontamentos 1947-1963, Quetzal, 2010