Coquette - de origem francesa "coquette" significa sedutora, na gíria portuguesa pode significar vaidosa ou graciosa. Intelectual - que pertence ao intelecto ou à inteligência, espiritual.

20
Ago 10

A cabeça de um escritor é um sítio inabitável, cheio de sombras negras que se devoram umas às outras, remorsos, fantasmas, dores, insignificâncias em que não reparamos e ele repara, sensações, luzes, criaturas sem nexo. Usam o papel para ordenar este caos, vertebrar o desespero, dar ao ilógico uma coerência lógica e mostrar o nosso retrato autêntico em cacos de espelho, fundos de poço trémulos, superfícies convexas em que temos de emagrecer por nossa conta. Não se pode estender a mão a quem lê, tem de se caminhar sozinho num nevoeiro aparente em que, pouco e pouco, as coisas se arrumam nos seus lugares. Em nenhum bom livro há personagens e história: quando muito aparência de personagens e história, usadas para tornar mais clara a vertigem do que somos. Tudo se passa no interior do interior e portanto não devia haver cursos de escrita

(um paradoxo nos termos)

mas de leitura criativa. Conheço menos bons escritores do que bons leitores, um bom leitor é uma espécie muito rara. Um autor do século dezanove dedicava os seus trabalhos aos felizes poucos, esxpressão roubada a Shakespeare

(we few, we happy few, we band of brothers)

capazes de nadarem ao seu lado em águas muito escuras e de regressarem à tona de mãos cheias. Um livro é mais uma orelha que uma voz onde, no fim de contas, é o bom leitor que conversa. O livro escuta. As páginas são ouvidos pacientes que nos guiam através da liberdade do silêncio, onde as nossas frases se reflectem e regressam com um sentido novo. O bom leitor só recebe na medida em que dá e a qualidade da obra depende desta troca constante, do fluxo e refluxo das emoções partilhadas. Temos de ser um agente activo do livro, fazê-lo nosso até que se torne, como queria Rilke de quem não sou admirador, excepto em raras passagens das Elegias, sangue, olhar e gesto. Se não for assim é uma comédia de enganos, um passatempo inócuo como quase tudo o que em Portugal se impinge, porque a maior parte dos editores são ignorantes ou vigaristas, oferecendo ao público pacotilha impressa: um bom editor, tal como um bom leitor, é mais raro que um bom livro. Uma editora comercialmente bem sucedida é má, ou então tem de fazer compromissos. A casa alemã onde estou, por exemplo, possui um catálogo honesto, dividido em duas partes, literatura e best-sellers. O argumento temos de pôr as pessoas a ler é idiota: o que temos é de ensinar as pessoas a ler. Até Lenine compreendia isto, ao afirmar que a arte não tem de descer ao povo, é o povo que tem de subir à arte. Claro que não é apenas um problema português, é um problema universal. Pasmo com as listas dos tops: ficção, dizem elas, quando a ficção não existe a não ser nas obras rasteiras. Se me dissessem que escrevia ficção sentia-me insultado: ficção que tolice, é o mundo inteiro que a gente mete entre as capas de um livro. Vende menos? Decerto, mas há-de vender sempre. Se tivermos lado a lado, à nossa frente, Camões e o jornal, a tendência imediata é pegar no jornal, mas o jornal desaparece amanhã e Camões fica. Chamo jornalismo, explicava Gide, ao que é menos interessante amanhã do que hoje. E depois a Arte não é um desporto de competição: o editor que ponha numa cinta, por exemplo, cem mil exemplares vendidos, ou julga falar de sabonetes ou não é um editor. Se o livro for bom há-de vender muito mais do que isso: quanto terá vendido Ovídio até hoje? É apenas uma questão de tempo, porque os bons leitores existirão sempre, ainda que poucos.

(...)

 

António Lobo Antunes

Visão, Número 911, 19 A 25 De Agosto 2010  

publicado por coquetteintelectual às 17:12

18
Ago 10

(...)

Observemos, agora, o Shakespeare-poeta. Como tal, há que considerá-lo sob os seguintes aspectos: o sonetista, o poeta narrativo, o lírico das canções dispersas nas peças, o autor das meditações filosóficas - autónomas como poesia - de muitas personagens, e o dramaturgo usando o verso como instrumento de acção dramática. Este último, desenvolvendo o verso branco, adaptou-o às mais subtis variações da expressão e foi avançando desde uma metrificação rígida, muito apoiada em pomposidades marlowianas, até à fluidez absoluta das últimas peças, em que a metrificação às vezes se torna, na sua infinita variabilidade, verso livre moderno(13). O lírico das canções - tantas vezes confiadas aos clowns das comédias, que são das personagens mais graciosas de Shakespeare - serve-se, como atrás referimos, da tradição popular para criar prodígios de ironia, de musicalidade e de audacioso nonsense.

(...)

E é precisamente essa arte da meditação poética que faz a força e a grandeza daqueles trechos que, nas peças, se destacam como poesia em si mesma, e não apenas como elos condutores da acção. Nesses trechos, e em alguns sonetos também, atinge Shakespeare as alturas máximas da expressão poética. A densidade do pensamento, a concatenação impecável do discurso, a originalidade deslumbrante das analogias esclarecedoras de uma intuição complexa, a perfeita identidade do ritmo e da transposição verbal, a nobre firmeza da grandiçloquência magnificadora, tudo se conjuga harmoniosamente para tornar tais trechos exemplos inultrapassáveis da poesia como conhecimento de si mesma e do mundo.

(...)

Os sonetos repartem-se em três grupos: os primeiros 126 referem-se expressamente ao belo jovem, cujos favores o poeta busca, temendo a rivalidade de um outro poeta; os sonetos 127 a 152 são lamentos dirigidos a uma dark lady que o tortura com as suas esquivanças; os dois últimos são apenas elegantes fechos da sequência.

(...)

E Shakespeare, quem era ele?

Um actor, um dramaturgo, um poeta, vivendo numa época em que as circunstâncias, ao declinar o sonho de libertação do Renascimento, colocavam o homem perante as contradições dramáticas da sua liberdade. O mundo era um palco onde tudo seria possível, se a solidão não fosse o preço a pagar pelo papel na peça. Shakespeare pagou, pela sua humanidade, o mais caro preço: a despersonalização completa. Não importa saber quem era Shakespeare, porque ele é as suas criações, ele é a demonstração de que o homem pode, despersonalizando-se, acrescentar ao mundo natural o mundo humano.

(...)  

 

(13) Evolução análoga percorreu Milton, da poesia «metafísica» da sua juventude até à metrificação de Paradise Lost e, sobretudo, Samson Agonistes.  

 

Jorge De Sena

A Literatura Inglesa, Livros Cotovia    

publicado por coquetteintelectual às 17:24

16
Ago 10

Se consegues manter a calma quando à tua volta

Todos a perdem e te culpam por isso,

Se consegues manter a confiança em ti próprio quando todos duvidam de ti,

Mas fores capaz de aceitar também as suas dúvidas;

 

Se consegues esperar sem te cansares com a espera,

Ou, sendo caluniado, não devolveres as calúnias;

Ou, sendo odiado, não cederes ao ódio,

E, mesmo assim, não pareceres demasiado condescendente nem altivo;

 

Se consegues sonhar - e não ficares dependente dos teus sonhos;

Se consegues pensar - e não transformares os teus pensamentos nas tuas certezas;

Se consegues defrontar-te com Triunfo e a Derrota

E tratar do mesmo modo esses dois impostores;

 

Se consegues suportar ouvir a verdade do que disseste,

Transformada, por gente desonesta, em armadilha para enganar os tolos,

Ou ver destruídas as coisas por que lutaste toda a vida,

E, mantendo-te fiel a ti próprio, reconstruí-las com ferramentas já gastas;

 

Se és capaz de arriscar tudo o que conseguiste

Numa única jogada de cara ou coroa,

E, perdendo, recomeçar tudo do princípio,

Sem lamentar o que perdeste;

 

Se consegues obrigar o teu coração e os teus nervos

A ter força para aguentar mesmo quando já estão exaustos,

E continuares, quando em ti nada mais resta

Que a Vontade que lhes diz: "Resistam!";

 

Se consegues falar a multidões sem te corromperes

Ou conviveres com reis sem perder a naturalidade,

Se consegues nunca te sentir ofendido seja por inimigos, seja por amigos queridos;

Se todos podem contar contigo, mas sem que os substituas;

 

Se consegues preencher cada implacável minuto

Com sessenta segundos que valham a pena ser vivios,

É a tua Terra e tudo o que nela existe,

E - o que é ainda mais - então, meu filho, serás um Homem.

 

Rudyard Kipling

Boletim Filosófico Da Nova Acrópole, Número 1, Outono 2009

publicado por coquetteintelectual às 19:55

10
Ago 10

(...) o objectivo principal proposto nestes Poemas, foi escolher incidentes e situações da vida comum e relatá-los ou descrevê-los, do começo ao fim, tanto quanto foi possível, numa selecção da linguagem realmente usada pelos homens, e, ao mesmo tempo, lançar sobre eles um certo colorido de imaginação, pelo qual coisas vulgares deviam ser apresentadas à mente com um aspecto invulgar; e, além disso, e sobretudo, tornar interessantes estes incidentes e situações descobrindo neles, com verdade mas não ostentosamente, as leis primeiras da nossa natureza: principalmente, no que diz respeito ao modo pelo qual associamos ideias num estado de excitação. Escolheu-se, geralmente, a vida humilde e rústica, porque, nessa condição, as paixões essenciais do coração encontram um melhor solo no qual podem atingir a sua maturidade, estão menos reprimidas e falam uma linguagem mais chã e mais enfática; porque, nessa condição de vida, os nossos sentimentos elementares coexistem num estado de maior simplicidade e, consequentemente, podem ser mais correctamente contemplados, e mais convicentemente comunicados; porque os costumes da vida rural brotam daqueles sentimentos elementares, e devido ao carácter necessário das ocupações rurais, são mais facilmente compreendidos e são mais duráveis; e, finalmente, porque nessa condição, as paixões humanas estão imbuídas das belas e permanentes formas da Natureza.

(...)

Permiti que pergunte o que se entende pela palavra Poeta? Que é um Poeta? A quem se dirige ele? E qual a linguagem que se espera dele? Ele é um homem falando a homens; um homem, é certo, dotado de sensibilidade mais viva, mais entusiasmo e ternura, que tem conhecimento maior da natureza humana, e uma alma mais compreensiva, do que se supõe serem comuns entre os homens; um homem satisfeito com as suas próprias paixões e volições, e que se regojiza mais do que outros homens com o espírito de vida que em si existe, deleitando-se a contemplar idênticas volições e paixões tal como se manifestam nos processos do Universo, e habitualmente impelido a criá-las onde não as encontra.

(...)

Mas, seja qual for a parcela desta faculdade que possamos supor que exista mesmo no maior Poeta, não pode haver dúvidas de que a linguagem que por ela lhe é sugerida, tem frequentemente, em vivacidade e verdade, de quedar-se aquém da que é pronunciada pelos homens na vida real, sob a pressão efectiva daquelas paixões, das quais o Poeta assim produz, ou sente serem produzidos, em si mesmo, certos cambiantes. 

Por muito elevado que seja o conceito em que desejaríamos ter a personalidade dum Poeta, é óbvio que ao descrever e imitar paixões, a sua ocupação é, em certa medida, mecânica, comparada com a liberdade e poder da acção e do sofrimento reais e substanciais. De tal modo que será desejo do Poeta aproximar os seus sentimentos dos das pessoas cujos sentimentos descreve, mas ainda talvez, deixar-se mergulhar por curtos períodos de tempo, na ilusão plena, e mesmo confundir e identificar os seus próprios sentimentos com os deles, modificando apenas a linguagem que lhe é sugerida, por ter em consideração que descreve com um propósito específico, o de dar prazer.

(...)

A Poesia é a imagem do homem e da natureza.

(...)

Afirmei que a Poesia é o transbordar espontâneo de sentimentos poderosos; tem a sua origem a partir da emoção recordada em tranquilidade: emoção é considerada até que, por uma espécie de reacção, desaparece gradualmente a tranquilidade, e uma emoção semelhante àquela que estava ante o sujeito de contemplação, é gradualmente produzida, e existe de facto ela mesma na mente.  

(...)

 

William Wordsworth

Posições Românticas Na Literatura Inglesa, Livros Horizonte   

publicado por coquetteintelectual às 16:30

09
Ago 10

 

 

Quando chegou a casa e desceu à varanda, a lua adormecia já no horizonte, espalhando sobre o mar a sua luz, essa espécie de azul extraterrestre que, embora celebrado por tantos poetas, continuava sempre a deslumbrá-lo. Acabara de fazer quarenta anos - todos lhe diziam que era uma idade muito difícil, pouco propensa a grandes ilusões, mas a festa correra bem, talvez melhor do que tinha pensado. Bebeu quase às escuras mais um gin, fumou sem pressa um último cigarro e abriu o presente que um amigo de infância lhe mandara três dias antes, para que o recebesse precisamente no seu aniversário: tratava-se de um espelho já antigo, cuja moldura vira melhores dias, começando a escamar-se em finas películas douradas. Respirou fundo, perscrutou com atenção aquele espelho que assinalava os seus quarenta anos e pendorou-o no quarto antes de se deitar. Como sentia ainda alguma febre, tomou um comprimido e estendeu-se na cama, antegozando as poucas horas de serenidade que a madrugada parecia prometer-lhe.

Teve um sono agitado - sabia que sonhara quase toda a noite, mas nada conseguia recordar. Nessa manhã, pouco antes de sair para o trabalho, demorou alguns minutos a observar-se naquele objecto singular: parecia-lhe que mudara qualquer coisa, que alguma parte do seu corpo ou da sua alma sofrera uma metamorfose, mas já estava atrasado e não pensou mais no assunto. Durante esse dia ocorreram-lhe de vez em quando imagens estranhas, cenas de um passado que nunca vivera, alucinações que tentou afastar como se na véspera tivesse experimentado uma droga nova e diferente, cujos efeitos não dominava nem sabia prever, mas lhe davam a sensação de que o seu espírito se desdobrara para dentro ou atravessara uma fronteira, um alçapão da consciência, passando a flutuar numa outra dimensão, numa realidade à qual ninguém - absolutamente mais ninguém - poderia jamais aceder.

Com a passagem dos dias, esse fenómeno - que de início até fora agradável - tornou-se obsessivo e doloroso: cada gesto banal do quotidiano, cada pessoa com quem se cruzava, cada conversa que a vida lhe exigia na sua troca de mensagens - mesmo no visor do telefone portátil -, tudo lhe começou a parecer insuportável, salvo os momentos em que se contemplava naquele espelho. E era aí que permanecia horas seguidas, olhando fixamente para a sua face e analisando-lhe todos os pormenores, como se só reencontrasse a paz à flor daquele rectângulo de vidro, naquela superfície lisa e cintilante, que reflectia as expressões mais vivas do seu ser e lhe devolvia sempre um novo rosto - talvez o que tivera aos vinte anos, cada vez mais igual aos retratos da sua juventude.

Deixou a pouco e pouco de sair de casa. Semanas mais tarde, quando vieram buscá-lo, não opôs resistência: insistiu apenas em levar o espelho e acompanhou tranquilamente os enfermeiros, enquanto balbuciava algumas palavras incompreensíveis.  

 

Fernando Pinto Do Amaral

Área De Serviço E Outras Histórias De Amor, Publicações Dom Quixote, 2006      

publicado por coquetteintelectual às 15:53

05
Ago 10

 

 

Naqueles tempos, ainda eu não tinha feito os onze anos. Em Julho, mandaram-me para uma quinta nos arredores de Moscovo, onde vivia um parente nosso chamado T...ov. Encontravam-se, nessa ocasião, reunidos na sua casa uns cinquenta convidados, ou talvez mais... À certa, não posso dizer quantos fossem pois não os contei um por um. A festa estava no seu apogeu e cada qual divertia-se como queria e podia. Quase parecia uma festa que nunca mais acabava por o dono da casa haver jurado dissipar, quanto antes, a sua colossal fortuna - objectivo que felizmente, logrou dentro de pouco, pois, de facto, dissipou até à última polegada das suas herdades.

A cada instante chegavam novos convidados. Moscovo ficava tão próximo que, da quinta, podia ver-se a cidade. Deste modo os convidados cansados não faziam mais que ceder o lugar aos recém-vindos para que a festa se prolongasse interminavelmente. Divertimentos de toda a espécie sucediam-se sem cessar e sem que se chegasse a prever o final da série. Tão depressa eram passeios nas margens do rio ou nas clareiras do bosque. As merendas e as jantaradas ao ar livre estavam sempre na ordem do dia.

Nas noites formosas ceávamos no terraço da senhorial residência, profusamente adornada com flores raras. Com essa plenitude florida aliada à radiante iluminação da mesa, as nossas damas - jovens e atraentes todas elas -, tornavam-se ainda mais bonitas. Com as frescas cores que traziam das excursões diurnas, com os semblantes animados e com os olhos brilhantes e alegres, sentavam-se à mesa e conversavam, alegremente, com uns e com outros, sempre graciosas e discretas. Entre sorrisos, vibravam gargalhadas de cristal.

Bailava-se, tocava-se música, cantava-se. Quando o tempo era mau, fazíamos quadros vivos, jogávamos os jogos de sociedade, e, naturalmente, também representávamos obras de teatro. Além disso, havia muitas vezes conferências, descrições dos acontecimentos mais notáveis, anedotas, etc., etc.

Por entre o tropel de convidados, apareciam alguns de personalidade muito destacada. Também ali não faltavam as invejas e a má-língua, nem as consabidas pequenas calúnias. Sem este lixo social, não pode haver Humanidade.

(...)

Mas eu, naqueles tempos, não tinha mais que onze anos. Faltava-me, portanto, compreensão para essa espécie de gente. Além disso, tinha o pensamento totalmente absorvido por coisas diferentes. Só me ficavam na memória vagas reminiscências do que escutara aqui ou acolá.

(...)

 

Fédor Mikhailovitch Dostoievski

O Pequeno Herói, Publicações Europa-América, 2007      

publicado por coquetteintelectual às 16:46

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