Muitas vezes pensei como poderia ser interessante para uma revista um artigo escrito por um autor qualquer que tivesse - isto é, que pudesse - pormenorizar, passo a passo, os processos pelos quais qualquer das suas composições atingiu o seu ponto de completude último. Porque é que um tal ensaio nunca foi dado ao mundo, não o sei dizer - mas talvez a vaidade autoral tenha mais a ver com a omissão do que qualquer outra causa. A maioria dos escritores - poetas em especial - preferem dar a entender que compõem por uma espécie de loucura - uma intuição estáctica - e positivamente ficariam arrepiados se deixassem o público dar uma espreitadela por detrás do cenário, às elaboradas e vacilantes cruezas do pensamento - aos verdadeiros objectivos apanhados apenas no último momento - aos inúmeros vislumbres de uma ideia que não chegaram à maturidade da visão plena - às fantasias completamente amadurecidas postas de lado em desespero por serem ingovernáveis - às cautelosas selecções e rejeições - às dolorosas rasuras e interpolações - numa palavra, ás rodas e carretos - os utensílios para as mudanças de cena - os escadotes e alçapões - as penas de galo, a tinta vermelha e as manchas negras, as quais, em noventa por cento dos casos, constituem as propriedades do histrião literário.
Por outro lado, tenho consciência de que o caso não é de maneira nenhuma comum, em que o autor esteja de algum modo em condições de refazer os passos pelos quais as suas conclusões foram alcançadas. Em geral, tendo nascido desordenadamente, as sugestões são perseguidas e esquecidas de maneira similar.
Pela minha própria parte, não partilho a repugnância a que aludi, nem em qualquer momento terei dificuldade em recordar mentalmente os passos progressivos de algumas das minhas composições. E, dado que o interesse de alguma análise, ou de uma reconstrução, tal como considerei ser desejável, é bastante independente de qualquer interesse real ou fantasioso pela coisa analisada, não será considerado como uma quebra de decoro da minha parte mostrar o modus operandi pelo qual algumas das minhas obras foram compostas. (...)
Edgar Allan Poe
Poética (Textos Teóricos), Fundação Calouste Gulbenkian, 2004