a menina despertou com a enorme ramela a picar no olho esquerdo, levantou da esteira com o corpo quente dos suores da noite e viu a galinha entrar em casa - velho hábito - para ir beber água na borda de uma bacia onde a roupa estava de molho desde cedo,
a menina empurrou a porta, a porta cedeu, às vezes é só assim, a mesma abertura que indica o caminho do amor e da vida, propicia a gulocide da morte, cruzou a porta - a menina, saiu,
a galinha cessou a bebericagem mansa e veio ver, andando; olhos em busca de uma comida errante que nunca havia, a menina - três anos - cruzou o quintal pequeno, não mais olhou a galinha, ouviu a vida da rua, a gente humana toda num fulgor de buzinas, fumos e os pés pisando com força a lama, a chuva traz recordações húmidas, soube-lhe bem a lama nos pés recém-vindos de um sonho bom, não parou, a estrada tão próxima e o impulso só - empurrando o corpo tão infantil para o circo onde, ao sol, as auras dos transeuntes bailavam em «rebita» colada com os corpos,
a galinha, antiga atravessadora de perigosas estradas parou o movimento das patas, o pescoço irrequieto seguiu dançando leste-oeste, o olhar também, e quem viu mais foi ela, a galinha, depois da lama, o asfalto sujo sustentava o trânsito que trouxe um carro como os outros,
a menina circulava, como as outras, em direcção ao outro lado da rua, a água - lá dentro - repousava quieta na bacia, o pai saíra cedo para trabalhar no aeroporto - é gente que está cá dentro e espera gente que vem de tão fora, e a mãe cedo saíra, antigo hábito de os dois confiarem num sono de manhã prolongada para, junto do meio-dia, a amiga chegar, acordar a menina, limpar a ramela, dar de comer, controlar as brincadeiras dela lá fora mas dentro do quintal, as brincadeiras da menina com a galinha, correrias, tropeços de choro e contentamento, até à chegada - fim do dia - dos pais, a mãe primeiro - sorriso e pão, o pai depois - sorriso só, tudo, tantas vezes, três anos antes do dia em que a amiga não veio e a bacia quieta de um sabão flutuante repousava no interior da casa, e a galinha viu - a estrada e o carro, a galinha é que viu!, regressando entristecida ao quintal, recolhendo-se num canto escuro, perdendo o desejo de debicar após ter olhado a estrada e o carro, o carro e a menina, a menina e os olhos fechados numa travessia última até perto - perto demais - do outro lado da vida,
a menina.
Ondjaki
Histórias Em Língua Portuguesa, Colecção Literatura Universal Número 48, Ambar, 2007