"Eu tinha-me esquecido de tudo. Da alegria, da impudência, da indolência, dos cheiros, dos silêncios e das vertigens, das imagens, das cores e dos ruídos, das suas caras, do timbre das suas vozes, da sua ausência e dos seus sorrisos, dos risos e das lágrimas, das alegrias e das impertinências, das sobrançarias e das necessidades de amor, do gosto dos primeiros anos da minha vida.
Mas no fundo desta cela invadida pela sombra, no frio da solidão, o passado recupera subitamente o seu espaço. Longo, doloroso, confessa-se. Talvez para enfrentar o vazio do momento presente. Hoje, por detrás destas paredes, as imagens, como fotografias falhadas em que os movimentos surgem esbatidos, rebentam em pedaços na minha memória.
A verdade é que eu não me tinha esquecido de nada, mas não me tinha dignado recuperar nada até aqui.
A minha vida podia ter sido perfeitamente normal. Se eu tivesse decidido de outra maneira, poderia ter existido como qualquer um de entre vós. Mas talvez no fundo a culpa não fosse só minha: a um determinado momento, alguém assumiu um ascendente sobre mim e eu nunca mais consegui ser dona dos meus actos. Talvez. Não sei.
À primeira vista, a minha existência parecia plana e insignificante. Vivia bem no meio de um mundo que não me via, que eu não compreendia. Existia porque me tinham imposto isso, porque era assim e não de outra maneira, eu devia contentar-me com o facto de viver, de estar ali, sem claudicar. No fim de contas, era uma criança como as outras, vivia sem me colocar nem a sombra de uma questão, aceitava o que me davam e não pedia nada. E, no entanto, o que me aconteceu é inelutável. Toda a gente sabe: as pessoas mais loucas são também as que, à primeira vista, têm um ar completamente normal. A obsessão é maligna: são estes rostos anónimos, cuja vida à partida não conhece a mínima preocupação, que ela ataca primeiro. Era o meu destino. Hoje nada me liga à criança despreocupada e cheia de vivacidade que eu era naquele tempo. De agora em diante, defrontam-se em mim duas identidades que já não reconheço.
Um dia, alguém me perguntou se estava arrependida. Eu não respondi. Talvez tivesse vergonha, não do que tinha feito, mas daquilo que podia sentir. Deveria certamente sentir-me desumana. E era-o, inegavelmente, mas menos por ter cometido um crime do que por não lamentar o meu acto."
Anne-Sophie Brasme
A Minha Melhor Amiga, Edições Asa, 1.ª Edição, 2003