Coquette - de origem francesa "coquette" significa sedutora, na gíria portuguesa pode significar vaidosa ou graciosa. Intelectual - que pertence ao intelecto ou à inteligência, espiritual.

21
Dez 08

 

 

"As pessoas perguntam-me «como é que foste lá parar?». O que elas querem mesmo saber é se também correm o risco de lá ir parar. Não sei responder à verdadeira pergunta. Tudo o que lhes posso dizer é que é fácil.

É fácil entrar num universo paralelo. Há tantos: os mundos dos loucos, dos criminosos, dos deficientes, dos moribundos, talvez o dos mortos também. São mundos que coabitam com o mundo e se lhe assemelham, mas que não estão nele.

(...) Estava no cinema, a ver um filme, quando uma onda de escuridão se abateu sobre a sua cabeça. O mundo apagou-se durante uns segundos. Percebeu que tinha enlouquecido. Olhou à sua volta para ver se tinha acontecido o mesmo a toda gente que estava no cinema, mas toda a gente que estava no cinema, mas todas as outras pessoas estavam absortas a ver o filme. Correu para a rua, porque a escuridão do cinema, combinada pela escuridão que ia dentro da sua cabeça, era demasiado.

- E depois? - perguntei-lhe.

- Uma imensa escuridão - disse ela.

Mas a maioria das pessoas entra progressivamente, fazendo uma série de perfurações na membrana entre o cá e o lá até surgir uma abertura. E quem consegue é que consegue resistir a uma abertura?

No universo paralelo as leis da física ficam suspensas. O que sobe não tem que necessariamente descer; um corpo em descanso não tende a permanecer em descanso; nem todas as acções provocam inevitavelmente uma reacção semelhante de sentido oposto. O tempo também é diferente. Pode correr em círculos, recuar, saltar do agora para o antes. Até a organização das moléculas é fluída: as mesas podem ser relógios, as faces, flores.

Mas estes factos só se descobrem depois.

Outra singularidade do universo paralelo é que é invisível deste lado, mas quem lá está dentro vê facilmente o mundo donde veio. Às vezes, esse mundo parece enorme e ameaçador, tremebundo como um monte de gelatina; outras vezes, parece um mundo em miniatura, fascinante, a girar numa órbita cintilante. Um mundo que não pode ser ignorado. Nunca."

 

Susanna Kaysen

Vida Interrompida, Gradiva, 2001   

publicado por coquetteintelectual às 19:38

20
Dez 08

 

 

Há um poeta em mim que Deus me disse...

A Primavera esquece nos barrancos

As grinaldas que trouxe dos arrancos

Da sua efémera e espectral ledice...

 

Pelo prado orvalhado a meninice

Faz soar a alegria os seus tamancos...

Pobre de anseios teu ficar nos bancos

Olhando a hora como quem sorrisse...

 

Florir do dia a capitéis de Luz...

Violinos do silêncio enternecidos...

Tédio onde o só ter tédio nos seduz...

 

Minha alma beija o quadro que pintou...

Sento-me ao pé dos séculos perdidos

E cismo o seu perfil de inércia e voo...

 

Fernando Pessoa

Poesias, Obras Completas De Fernando Pessoa, Edições Ática, 7.ª Edição 

publicado por coquetteintelectual às 12:40

18
Dez 08

 

Colaborou ainda, embora esporadicamente, na revista Seara Nova, havendo quem a veja como percursora, tal como Irene Lisboa, do movimento de emancipação da mulher. Parafraseando António José Saraiva e Óscar Lopes, em História da Literatura Portuguesa: Florbela estimula e antecede o "movimento de emancipação literária da mulher" que romperá "a frustação não só feminina como masculina, das nossas opressivas tradições patriarcais..." Os dois autores classificam-na de "sonetista com laivos parnasianos esteticistas" e "uma das mais notáveis personalidades líricas".

Também Irene Lisboa se baterá toda a vida pela não discriminação da literatura feminina, tratada como arte secundária ou menor, levando-a a afirmar: "Mulheres! Nos tempos que correm, de vós as mais lidadas e as mais ouvidas, a uma tarefa vos devíeis dar: a de derrubar o preconceito de que há uma arte feminina, arte de mulheres, diferente da dos homens. Ainda não percebi que bases tem uma tal arte. Nem até o que chega a significar intelectualidade feminina, inteligência de mulheres, distinta da dos homens. Distinguir, como se tem pretendido, arte feminina de arte masculina, parece-me coisa bem temerária e difícil. (...) E assim teríamos intelectualmente dividido o mundo em feminino e masculino. (...) Mente feminina (irracionalista) e mente masculina (racionalista)..."

Irene Lisboa mencionará em Solidão: "Pus-me a ler os sonetos da Florbela, que há muito tempo não lia. Esta mulher é realmente uma parnasiana, lasciva e medida. É uma delicada trabalhadora do verso e uma sensualista. A sua dor é radiosa, iluminada, coerente e elegante."

Dá-se também no período de Junho de 1916 a Abril de 1917 a troca de correspondência com Júlia Alves, colaboradora da revista Modas e Bordados, a quem envia vários poemas e a quem revela intimidades, apesar de nunca se terem encontrado pessoalmente, só se conhecendo uma à outra por fotografia.

 

 

Cadernos Biográficos De Personalidades Portuguesas Do Século XX Número 6

Florbela Espanca, A Poetisa Do Amor 1894-1930

Jornal Público, 2008 

publicado por coquetteintelectual às 21:31

 

A poetisa inicia colaboração no Notícias de Évora e em A Voz Pública de Évora em 1916, ano em que Portugal inicia a sua intervenção na Primeira Grande Guerra. Entusiasmada com a causa republicana, envolve-se num projecto literário: A Alma de Portugal, em "homenagem humilíssima à pátria que estremeço", trabalho esse que abandonará. Iniciar e abandonar projectos literários será uma constante até à publicação da sua primeira obra. Registe-se, igualmente, que muitos serão os manuscritos que só irão ver a luz do dia após a morte da autora.

Nesse mesmo ano envia alguns dos seus poemas para apreciação de Raul Proença, intelectual republicano, à data Conservador da Biblioteca Nacional de Lisboa. A opinião crítica do escritor, com quem trocará correspondência dispersa ao longo da vida, será fundamental para o auto-reconhecimento do seu talento bem como para a definição da sua personalidade poética.

 

Cadernos Biográficos De Personalidades Portuguesas Do Século XX Número 6

Florbela Espanca, A Poetisa Do Amor 1894-1930

Jornal Público, 2008

publicado por coquetteintelectual às 19:39

17
Dez 08

 

Fernando Pessoa nasceu no quarto andar esquerdo do n.º 4 do Largo de S. Carlos (defronte do Teatro) no Chiado, em Lisboa, às quinze horas e vinte minutos do dia 13 de Junho de 1888.

Tendo nascido com o Sol em gémeos, Pessoa revelar-se-ia um ser por natureza curioso, comunicativo (pela escrita), com uma enorme sede de conhecimento. Regidos por Mercúrio, os nativos de Gémeos possuem uma versatilidade notável no plano intelectual, destacando-se pela sua excelente capacidade em verbalizar conceitos e transmitir informação. Necessitam, porém, de novidade e de novos estímulos que os possam entusiasmar.

Enquanto signo de Ar, possui o poder misterioso de unir, pelo pensar, realidades opostas. No entanto, a inconstante e excessiva actividade mental, pode muitas vezes levar a que fiquem indecisos ao nível da acção e presos na teia da dualidade.

 

Cadernos Biográficos De Personalidades Portuguesas Do Século XX Número 1

Fernando Pessoa, Um Rasgo De Génio Puro 1888-1935

Jornal Público, 2008

publicado por coquetteintelectual às 20:52

16
Dez 08

 

 

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos.

 

David Mourão Ferreira

publicado por coquetteintelectual às 22:44

Dream on girl, dream on girl
I want to see you sleep tonight
You’re up and down
You hit the ground
And time is drifting trough your fears

I can’t find your dreams tonight
And make your lover come back home
If you don’t know, you are on your own
I’ll choose the best days for your sleep

Come back to see the day you lost your heart
And odd your hopes
I’ll take you to see the sunrise and try to catch your ghost

Come on girl, a dream is your world
The sins you see are in your mind
The words that you speak are here in my ear
So i can hear you falling down

Take a breath to see me
I can wait for you to
Live your live with no hopes but
If you still believe…

Come back to see the day you lost your heart
And odd your hopes
I’ll take you to see the sunrise and try to catch your ghost

 

Rita Redshoes

"Dream On Girl"

Golden Era

publicado por coquetteintelectual às 22:35

14
Dez 08

 

Rosa Lobato de Faria, nasceu em Lisboa em Abril de 1932. Poeta e romancista, o essencial da sua poesia está reunido no volume Poemas Escolhidos e Dispersos, de 1997. O seu primeiro romance, O Pranto de Lúcifer, veio a público em 1995.

Seguiram-se-lhe Os Pássaros de Seda (1996), Os Três Casamentos de Camila S. (1997), Romance de Cordélia (1998), O Prenúncio das Águas (1999), A Trança de Inês (2001), O Sétimo Véu (2003), Os Linhos da Avó (2004), A Flor do Sal (2005), A Alma Trocada (2007) e A Estrela de Gonçalo Enes (2007).

É também autora de diversos livros infantis.

Está traduzida em Espanha, França e Alemanha e representada em várias colectâneas de contos, em Portugal e no estrangeiro.

É também conhecida do grande público como actriz de televisão e cinema.

Em 2000, obteve o Prémio Máxima de Literatura.

 

publicado por coquetteintelectual às 21:26

 

 

"Quando Margarida chegou à Casa Azenha teve aquela sensação, não desconhecida mas sempre inquietante, de já ter estado ali.

(...)

Margarida sentiu um arrepio ao pensar nisto. Apalpou o colchão e encantou-se com o minucioso bordado dos lençóis de cambraia. Verificou a luz da mesa-de-cabeceira e foi à casa de banho fazer a sua toilette nocturna. Tomou um duche delicioso, enxugou-se com uma toalha de óptima felpa. Voltou para o quarto nua, pendurou uns jeans e uma t-shirt que tirou da mala para vestir no dia seguinte. De repente sentiu-se incomodada, como se alguém a observasse. E percebeu. Na parede fronteira à cama estava um quadro a óleo representando um homem moreno. Um belíssimo homem, por sinal, que, ao contrário das fotografias da cómoda, parecia bem vivo e a olhava com olhos trocistas. Ela conhecia o truque dos pintores que fazem com que as figuras dos quadros mirem os observadores para onde quer que estes se dirijam. Mas aquilo era demais. Não se tratava dos olhos vazios e inexpressivos que já vira tantas vezes, mas de um olhar bem vivo, irónico, crítico, apreciador, o olhar de um homem que conhece e ama as mulheres, e instintivamente Margarida foi à mala buscar um pijama e vestiu-o.

O que é que queres? perguntou, desafiadora. E ouviu nitidamente uma voz masculina, grave, doce, responder: tudo.

Ficou aterrada. Era muito estranho o que se  passava ali. Meteu-se na cama, mas não conseguia despregar os olhos do quadro. Foi com mãos trémulas que tirou os brincos das orelhas e os posou na mesinha-de-cabeceira, ao lado do castiçal. Castiçal? Claro, para quando faltasse a luz. Que pelos vistos nunca faltava, porque a vela era nova. E o homem a olhar para ela. Tudo, continuava a dizer, agora em silêncio. Tinha-a visto nua, o que poderia esconder-lhe? A não ser o desejo que de repente a assaltou, e acreditou que, durante o sono, ele desceria do quadro e viria violá-la, amá-la com todas as forças, aventura de uma noite com um desconhecido, um feiticeiro, um fantasma.

(...)

A verdade é que o homem do quadro parecia ter uma inquietante semelhança com a pessoa por quem estava apaixonada, mas, quando se está louco de amor por alguém, parece-nos ver esse alguém em todo a parte.

O chá acabou por fazer efeito e dormiu até de manhã. Os lençóis de cambraia não guardavam qualquer sinal de violação ou de lutas amorosas, tão lisinhos e arrumados como se ninguém ali tivesse dormido. Margarida abriu os olhos e sentiu que qualquer coisa de muito estranho se passava consigo. Deixou-se ficar de olhos fechados, buscando a certeza de que não estava a enlouquecer. Para começar, não tinha o pijama vestido. Apalpou-se sem olhar e sentiu um tecido finíssimo, idêntico aos lençóis. Pôde perceber as rosinhas bordadas na gola, as nervuras do peitilho. Sentiu também que o tecido se lhe enredava nas pernas, como se de uma camisa de noite se tratasse. Tinha a certeza de ter vestido um pijama azul: casaco e calças. Mas quando ousou abrir os olhos e levantar a roupa e espreitar para dentro da cama, viu a longa saia cor-de-rosa cheia de babados. Foi ele, pensou. Está a fazer troça de mim. Mas quando olhou para a parede, resolvida a perder o medo e a pedir-lhe satisfações, o quadro não estava lá."

(...)

 

Rosa Lobato de Faria

As Esquinas Do Tempo, Porto Editora, 2008   

publicado por coquetteintelectual às 20:53

13
Dez 08

 

"Eu tinha-me esquecido de tudo. Da alegria, da impudência, da indolência, dos cheiros, dos silêncios e das vertigens, das imagens, das cores e dos ruídos, das suas caras, do timbre das suas vozes, da sua ausência e dos seus sorrisos, dos risos e das lágrimas, das alegrias e das impertinências, das sobrançarias e das necessidades de amor, do gosto dos primeiros anos da minha vida.

Mas no fundo desta cela invadida pela sombra, no frio da solidão, o passado recupera subitamente o seu espaço. Longo, doloroso, confessa-se. Talvez para enfrentar o vazio do momento presente. Hoje, por detrás destas paredes, as imagens, como fotografias falhadas em que os movimentos surgem esbatidos, rebentam em pedaços na minha memória.

A verdade é que eu não me tinha esquecido de nada, mas não me tinha dignado recuperar nada até aqui.

A minha vida podia ter sido perfeitamente normal. Se eu tivesse decidido de outra maneira, poderia ter existido como qualquer um de entre vós. Mas talvez no fundo a culpa não fosse só minha: a um determinado momento, alguém assumiu um ascendente sobre mim e eu nunca mais consegui ser dona dos meus actos. Talvez. Não sei.

À primeira vista, a minha existência parecia plana e insignificante. Vivia bem no meio de um mundo que não me via, que eu não compreendia. Existia porque me tinham imposto isso, porque era assim e não de outra maneira, eu devia contentar-me com o facto de viver, de estar ali, sem claudicar. No fim de contas, era uma criança como as outras, vivia sem me colocar nem a sombra de uma questão, aceitava o que me davam e não pedia nada. E, no entanto, o que me aconteceu é inelutável. Toda a gente sabe: as pessoas mais loucas são também as que, à primeira vista, têm um ar completamente normal. A obsessão é maligna: são estes rostos anónimos, cuja vida à partida não conhece a mínima preocupação, que ela ataca primeiro. Era o meu destino. Hoje nada me liga à criança despreocupada e cheia de vivacidade que eu era naquele tempo. De agora em diante, defrontam-se em mim duas identidades que já não reconheço.

Um dia, alguém me perguntou se estava arrependida. Eu não respondi. Talvez tivesse vergonha, não do que tinha feito, mas daquilo que podia sentir. Deveria certamente sentir-me desumana. E era-o, inegavelmente, mas menos por ter cometido um crime do que por não lamentar o meu acto."

 

Anne-Sophie Brasme

A Minha Melhor Amiga, Edições Asa, 1.ª Edição, 2003 

publicado por coquetteintelectual às 23:38

12
Dez 08

 

 

Nunca reflectira longamente sobre a forma como morreria - ainda que, ao longo dos meses anteriores, tivesse tido motivos de sobra para tal -, mas, mesmo que o tivesse feito, jamais teria imaginado que seria assim.

Olhei fixamente para o lado oposto da longa sala, sem respirar, fitando os olhos negros do caçador, e este lançou-me também um olhar amável.

Era decerto uma boa maneira de morrer: morrer no lugar de alguém, de alguém que eu amava. Chegava mesmo a ser nobre. Esse facto deveria ter alguma importância.

(...)

Quando a vida nos oferece um sonho ultrapassa largamente todas as nossas expectativas, não é razoável sentir pesar quando o mesmo chega ao fim.

O caçador sorria de um modo amistoso à medida que avançava vagarosamente para me matar.

 

Stephanie Meyer

Crepúsculo, Edições Gailivro, 4.ª Edição, 2008

publicado por coquetteintelectual às 23:50

 

Já alguma vez, leitor, teve aquela sensação de desejar que parem de lhe perguntar se já teve determinada sensação? Suponho que não. Digamos que não é uma sensação muito frequente. Confesso que também não posso dizer que a tenha tido. Mas tenho muitas vezes a seguinte sensação: parece-me que as coisas quase nunca são tão boas como as palavras que as designam. Mais: as coisas melhoram ou pioram consoante as palavras que as designam. Dou um exemplo: um bacalhau com batatas custa cinco euros. Mas um bacalhau braseado em lascas com batatas salteadas em azeite virgem não se encontra por menos de dez euros e meio - embora seja o mesmo bacalhau e as mesmas batatas. E, de facto, o segundo bacalhau sabe melhor. Os profissionais da restauração, linguistas subtis, descobriram o truque, e é por isso que as refeições estão cada vez mais caras.

O contrário também acontece. Vejamo como são as coisas: há dias, encontrava-me a bordo de um carro com motorista. O veículo tinha um taxímetro e uma placa luminosa com a palavra «táxi» no tejadilho, pelo que andei vários minutos convencido de que estava num táxi. Enfim, precipitações. Só dei pelo erro quando o motorista me disse: «Faz hoje dez anos que tenho o "táxe".»

Já tinha ouvido falar de taxistas que enganam as pessoas, mas isso era demais. Levar uma pessoa a acreditar que apanhou um táxi e depois, a meio caminho, informá-la assim, sem preparação nem cuidado, de que está dentro de um «táxe» pareceu-me cruel. Que diriam as pessoas que me esperavam para um encontro de extrema importância quando me vissem chegar num «táxe»? Continuariam a querer jogar à bola comigo ou cancelariam a partida?

(...)

É como vos dizia no início: a maneira de designar a realidade, às vezes, parece que coiso. Daí a necessidade de nos sabermos exprimir bem.

 

Ricardo Araújo Pereira

A Boca Do Inferno, Edições Tinta Da China, 2007  

publicado por coquetteintelectual às 17:31

10
Dez 08

 

o teu sono anoiteceu mais que a noite

e hei-de escrever-te sempre sem que nunca

te escreva sei as palavras que fechaste

nos olhos mas não sei as letras de as dizer

ensina-me de novo a ensinares-me for

ir ter contigo ao teu sorriso ensina-me

a nascer para onde dormes que me perco

tantas vezes numa noite demasiado pequena

para o teu sono num silêncio demasiado fundo

dormes e tento levantar a pedra que te

cobre maior que a noite o peso da pedra que

te cobre e tento encontrar-te mais uma vez

nas palavras que te dizem só para mim

o teu sono anoiteceu mais que as mortes

que posso suportar e hei-de escrever-te

sempre e mais uma vez sozinho nesta noite

 

José Luís Peixoto

A Criança Em Ruínas, Edições Quasi, 2007 

publicado por coquetteintelectual às 19:09

09
Dez 08

 

 

"E eis-me preso à memória escura dos teus olhos, dos teus passos saltitantes, da tua alegria convicta que a partir de certa altura começou a açucarar demasiado a minha vida. Não consigo concentrar-me. Passo os dias com os olhos sobre as letras dos livros que tenho de ler e não consigo entrar neles. E ouço muitas vezes a canção de Pascoal:

«A sombra das nuvens no mar / O vento na chuva a dançar / Uma chávena a fumegar / Tudo me falava de ti / A sombra das nuvens desceu / O céu alto arrefeceu / E o mar bravio perdeu / A luz que lhe vinha de ti.» Há quanto tempo não me arde o coração?"

 

Inês Pedrosa

Fazes-me Falta, Publicações Dom Quixote, 2002

publicado por coquetteintelectual às 22:02

05
Dez 08

 

António Joaquim de Castro Feijó nasceu em Ponte de Lima em 1859. Formou-se em Direito pela Universidade de Coimbra e ingressou na vida diplomática, tendo representado o seu país, durante muito tempo, na corte de Estocolmo, onde veio a falecer em 1917. Dez anos depois o governo sueco enviou a Portugal os seus restos mortais (juntamente com os da mulher do poeta) num barco de guerra que, para tal fim, realizou uma viagem especial. A municipalidade de Ponte de Lima erigiu-lhe um monumento, cuja inauguração se verificou em 1938.

A poesia de António Feijó caracteriza-se, quanto à forma, por um esmero invulgar que, sem favor, se pode dizer sinónimo de perfeição, sem que, todavia, os seus versos pareçam rebuscados ou artificiosos, antes são naturais, correntios, melodiosos e sinceros.

(...)

Notável artista ele o foi de certeza.

 

Líricas Portuguesas, Portugália Editora, 2.ª Edição

publicado por coquetteintelectual às 18:14

 

As cristalinas lágrimas vertidas

Pela noite nas águas tenebrosas

São no abismo profundo convertidas

Em pérolas radiosas...

Mas as pérfidas lágrimas caídas

Desses teus olhos lânguidos e ardentes,

No meu peito amoroso recolhidas,

Só geraram serpentes...

 

António Feijó

Líricas Portuguesas, Portugália Editora, 2.ª Edição 

publicado por coquetteintelectual às 18:05

04
Dez 08

 

O artista é o criador de coisas belas.

O objectivo da arte é revelar a arte e ocultar o artista.

O crítico é aquele que sabe traduzir de outro modo para um novo material a sua impressão de coisas belas.

A mais elevada, tal como a mais rasteira, forma de crítica é um modo de autobiografia.

Os que encontram significações torpes nas coisas belas são corruptos sem sedução, o que é um defeito.

Os que encontram significações belas nas coisas belas são os ocultos: para esses há esperança.

Eleitos são aqueles para quem as coisas belas apenas significam Beleza.

Um livro moral ou imoral é coisa que não existe. Os livros são bem escritos, ou mal escritos. E é tudo.

A aversão do século XIX pelo Realismo é a fúria de Caliban ao ver a sua cara no espelho.

A vida moral do homem faz parte dos temas tratados pelo artista, mas a moralidade da arte consiste no uso perfeito de um meio imperfeito. Nenhum artista quer demonstrar coisa alguma. Até as verdades podem ser demonstradas.

Nenhum artista tem simpatias éticas. Uma simpatia ética num artista é um maneirismo de estilo imperdoável.

O artista nunca é mórbido. O artista pode exprimir tudo.

O pensamento e a linguagem são para o artista instrumentos de arte.

O vício e a virtude são para o artista matérias de arte.

Sob o ponto de vista da forma, a arte do músico é o modelo de todas as artes. Sob o ponto de vista do sentimento, é a profissão de actor o modelo.

Toda a arte é, ao mesmo tempo, superfície e símbolo. Os que penetram para além da superfície, fazem-no a expensas suas. Os que lêem o símbolo, fazem-no a expensas suas.

O que a arte realmente espelha é o espectador, não a vida.

A diversidade de opiniões sobre uma obra de arte revela que a obra é nova, complexa e vital.

Quando os críticos divergem, o artista está em consonância consigo mesmo.

Podemos perdoar a um homem que faça alguma coisa útil, conquanto que não a admire. A única justificação para uma coisa inútil é que ela seja profundamente admirada.

Toda a arte é completamente inútil.

 

Oscar Wilde

"Prefácio", O Retrato De Dorian Gray, Vega, 2000

publicado por coquetteintelectual às 21:26

03
Dez 08

 

 

Não canto porque sonho.
Canto porque és real.
Canto o teu olhar maduro,
O teu sorriso puro,
A tua graça animal.
Canto porque sou homem.
Se não cantasse seria
somente um bicho sadio
embriagado na alegria
da tua vinha sem vinha.
Canto porque o amor apetece.
Porque o feno amadurece
nos teus braços deslumbrados.
Porque o meu corpo estremece
Por vê-los nus e suados.

 

Eugénio de Andrade

Primeiros Poemas / As Mãos E Os Frutos, Fundação Eugénio de Andrade

publicado por coquetteintelectual às 21:23

02
Dez 08

 

Texto quer dizer Tecido; mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto, por um véu acabado, por detrás do qual se conserva, mais ou menos escondido, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a ideia generativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelançamento perpétuo; perdido nesse tecido - nessa textura - o sujeito desfaz-se, como uma aranha que se dissolvesse a si própria nas secreções construtivas da sua teia. Se gostássemos de neologismos, poderíamos definir a teoria do texto como uma hifologia (Hypos é o tecido e a teia de aranha).

 

Roland Barthes

O Prazer Do Texto, Edições 70

 

publicado por coquetteintelectual às 22:58

01
Dez 08

 

 

"Conheço as palavras pelo dorso. Outro, no meu lugar, diria que sou um domador de palavras. Mas só eu - eu e os meus irmãos - sei em que medida sou eu que sou domado por elas. A iniciativa pertence-lhes. São elas que conduzem o meu trenó sem chicote, nem rédeas, nem caminho determinado antes da grande aventura.

Sim, conheço as palavras. Tenho um vocabulário próprio. O que sofri, o que vim a saber com muito esforço fez inchar, rolar umas sobre as outras as palavras. As palavras são seixos que rolo na boca antes de as soltar. São pesadas e caem. São o contrário dos pássaros, embora "pássaros" seja uma das palavras. A minha vida passou para o dicionário que sou. A vida não interessa. Alguém que me procure tem que começar - e de se ficar - pelas palavras. Através das várias relações de vizinhança, entre elas estabelecidas no poema, talvez venha a saber alguma coisa. Até não saber nada, como eu não sei."

 

Ruy Belo

"Imagens Vindas Dos Dias", Todos Os Poemas, Assírio & Alvim, 2000 

publicado por coquetteintelectual às 22:40

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